ciganas
Mãe e filha entram descontraidamente na sala de audiências, acompanhadas da técnica dos serviços sociais, que não lhes devota qualquer simpatia. A mais velha, cerca de quarenta anos, tem uma tez farruscada e um olhar azul profundo de marianas; a mais nova, de quinze, por aí, tem um cabelo louro comprido e oxigenado, e as unhas azul turquesa lascadas. Traz consigo uma recém-nascida, invisível e silenciosa, encolhida num ovo tapado por um cobertor enfeitado com purpurinas. A mãe mais velha tem a mama de fora e alimenta sem pudor uma bebé de nove meses, gorducha e risonha, igualmente farruscada, mas de olhos azuis mais claros, que brilham como safiras. É tal a naturalidade que o Tribunal nem repara e, quando o faz, releva e segue a diligência como se nada fosse. A bebé, de lacinho branco agarrado em desespero ao cabelo ralo, atrai todos os olhares, o instinto a sobrepôr-se ao preconceito, um nato, outro construído, porque mulheres somos todas, mães, quase todas, mãe una, mãe terra. A técnica contrasta com elas, a pele macilenta e um olhar baço de enfado, num desprezo mal contido por aquela gente barulhenta, mal vestida e alegre. Fixa o tédio nos papéis que tem no colo, indiferente ao sorriso aberto ao seu lado, onde despontam já dois dentes de leite. É nova e magra, mas de um magro chupado das canetas, e tem o ar resignado e curvado dos velhos. Enoja-a o acto primário e primordial a que assiste, contrariada, mas aguenta-se, cumprindo sofrivelmente o seu dever de assistir os outros. A criança larga a mama da mãe, que pende, ainda cheia e redonda, e insiste em pôr-se de pé, numa dança só dela, enquanto cospe a chupeta para o chão e resmunga, a estranhar o facto de cada um falar à vez, o que se parece muito ao silêncio. A loura, irmã mais velha, apanha a dita do chão e, sem a limpar, despeja-lhe umas gotas de um xarope açucarado que a miúda suga gulosamente. O pressuposto é que existe uma criança em risco: a cigana loura, que pariu aos quinze e casou aos catorze. Ali, trata-se de protecção e não de crime, pelo que a solução passa pelo apoio da família, ou seja, da mãe, que tem mais oito filhos e se compromete a ajudar a filha com a neta, que continua no seu sono invisível. Sorri, contente com o alargamento da família, com a filha da filha e com a sua outra filha de nove meses; a mama chega pra todas, onde cabem oito, cabem nove ou dez. Ninguém sabe o que está ali a fazer. Porque razão é preciso homologar qualquer acordo que seja. Por que razão têm ambas que entender o que significa "homologar" e o que raio é o "supremo interesse da criança". O clã ajuda-se e protege-se, sempre assim foi e será. Repetem uma espécie de juramento, um compromisso sem nexo que as obriga a cumprir, perante o Tribunal, certas condições, obrigações de facere, que lhes são irrelevantes porque lhes saem naturais desde o início dos tempos. Findas as formalidades, a mais velha levanta-se e ajeita o laço em queda na cabeça da filha pequena; retiram-se com espalhafato, a miúda de nove meses a dizer adeus a todos os presentes, acenando a mãozita suja e descoordenada. Vieram em passeio à cidade, conheceram o tribunal e o juiz, disseram a tudo que sim, como lhes ordenou a assistente social, e agora vão para casa. Fazer o que sempre fizeram. A técnica regressa ao trabalho forçado no terreno, a fungar de alergias, das primaveris e das outras. Sofre de rinites e de contra-senso, pois tem um coração novo que aos poucos se desfaz num azedume precoce.