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Haviam-se empanturrado de azevias, filhozes, fatias paridas e sonhos. Ele olhava com laivos de enjôo para o esqueleto do perú, ao abandono em cima da toalha adamascada, e para os copos de cristal meio vazios de tinto reserva. Reparou nas dedadas e nas marcas delábios na borda dos copos sujos e fixou-se estupidamente nelas, como se os gritos dos miúdos, as sentenças dos avós comodamente sentados nos sofás com o chá digestivo nos joelhos e os gorgolejos televisivos do Pavarotti no concerto de Natal, fossem apenas ruído de fundo ou música de elevador. As olheiras dela assinalavam-lhe o cansaço como uma seta apontada aos anos que efectivamente tinha mas não parecia. Um avental com nódoas de recheio tapava-lhe o vestido de noite preto e os sapatos de salto haviam sido atirados para o chão da cozinha a meio da confecção do leite-creme. Ele fingia ouvir os primos distantes a descrever os invejáveis progressos feitos na escalada da vida, enquanto pensava nas dedadas nos copos, nas olheiras dela e nos seus pés descalços, que iam e vinham da cozinha em silêncio. De cada vez que regressava à mesa, ela mergulhava o indicador no açucar das filhozes e levava-o à boca, sem saber que ele via naquele gesto um sinal urgente, como um verylight disparado numa noite escura. Sorrateiro e ansioso, esgueirou-se para a cozinha como um miúdo que salta uma cerca para ir apanhar a bola e, enquanto ela punha a loiçana máquina, ele ajoelhou-se e beijou-lhe os pés frios sob as meias de lycra. Ela fechou os olhos, apertando o esfregão bravo entre os dedos. Quando o filho mais novo entrou a pedir água, ele fingiu que estava à procura de um garfo caído aos pés dela e quando o filho mais velho entrou a perguntar pela mãe, ele ainda não tinha encontrado o garfo. Antes de saírem, ele conduziu-a ao quarto com a gentileza e a firmeza de quem ajuda um cego a atravessar a rua, tirou-lhe o avental sujo, vestiu-lhe o casaco, foi buscar-lhe os sapatos atirados para o canto do fogão e calçou-lhos, numa intencionalidade quase insuportável. Na missa, enquanto o padre contava a história de um menino que nascera para ossalvar e todos cantavam aleluia, ele pensava nas olheiras dela, nos copos manchados, no dedo mergulhado no açucar e no momento em que a libertaria dos saltos altos, dos primos, do perú, dos filhos, das meias de lycra, do esfregão bravo e das avós com o chá nos joelhos. No dia seguinte, manhã tardia, acordaram os dois no sofá da sala, embrulhados na toalha adamascada e entrelaçados um no outro como as raízes de duas árvores que cresceram juntas. Ao seu lado, os olhos aguados dos filhos fitavam o vazio da lareira apagada, recordando-os de que, no abandono da paixão celebrada noite adentro, o Pai Natal se esquecera de deixar as prendas no sapatinho.