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Há alturas em que devemos guardar as coisas boas que nos acontecem, mesmo as inexistentes, como as cascas de amendoins, as de lana caprina, os papéis de rebuçado e o cotão nos cantos da sala. Podemos tropeçar e encontrá-las debaixo de pedras, como bichos escondidos, ou, então, elas entrarem-nos olhos dentro e escarrapacharem-se-nos no coração: o meio de transporte e a forma de locomoção é totalmente indiferente, chegam sempre ao destino, onde se instalam como velhas reformadas, das que vieram para ficar. Tenho tido sorte, volta e meia, vêm coisas dessas sob a forma de pessoas por mim adentro, rebentam-me fechaduras com bazucas ou equivalente, voam sorrateiramente pelas minhas aberturas e instalam-se-me como vampiros queridos nas curvas do meu pescoço, que lambem mas não mordem, enquanto me finjo a dormir, faz de conta que nem dou pelo seu aninhar, é da maneira que me corre um sorriso ainda maior na direcção dos lábios. Quero lá saber de não ter fechadura e ficar encostada no trinco, a abanar pelos gonzos, afinal, fui às chaves do areeiro e daquelas já não havia, por isso, deixo-me ficar, de janelas abertas no gozo do fresco da noite e das coisas e dos bichos e das pessoas, facilito intrusões inesperadas, pisco o olho às corujas e outros animais nocturnos que se me poisam nas pontas dos dedos dos pés por cima do lençol e que velam por mim enquanto finjo que sonho. Lá está, tenho tido sorte: ganho mesmo quando não jogo, duplicam-se-me os feijões e as riquezas, embora não arrisque, nunca te arrisquei. Aproveito a deixa e brinco e finjo que sou eu a fingir que não te quero, nem reparei que estavas aí, nada disto existe, nada disto é fado. Só tens que ter cuidado, porque quando amanhecer o sol entra-nos pela janela e enquanto a mim me acorda da insónia, a ti,pulveriza-te em cinzas e depois sujas-me os lençóis. Mas como és uma coisa boa que eu não quero que ninguém saiba nem me apetece partilhar, mais faltava, recolherei com carinho o que restar de ti e guardá-lo-ei numa espécie de urnadaquelas cheias de vivos, dourados e baixo-relevos, digna de uma comemoração centenária. Depois, compro outra fechadura, dê lá por onde der, fecho a porta a fazer género e aguardo a surpresa seguinte, mais um golpe de sorte, coisas novas, outros mimos, de alguém que a rebentou de novo, desta vez à machadada, à paulada, com um obus, quem sabe, e se me aninhe noutro lado qualquer e me assista durante a noite, quando finjo que durmo só para ser sonhada por um outro como tu, na calada da noite, enquanto essoutro não se dissolver em pó e eu não fingir que acordo e me espreguiço para lhe guardar e selar as memórias que deixou espalhadas nos meus lençóis.