mais um tirinho no pé
Como já estava a adivinhar (é o que eu digo: não posso passar ao lado do euromilhões), votar no PSD ou no PP significará, mais tarde ou mais cedo, um retrocesso civilizacional relativamente a uma das mais importantes conquistas do PS: a despenalização do aborto. Portas andava a evitar a questão, esperto como é, mas Passos Coelho, mais tonto, deu outro tiro no pé, ao chamar o assunto à colação. Hoje, ambos os partidos perderam muitas eventuais mulheres votantes que, revoltadas com o facto de o PS lhes ter ido ao bolso, estavam dispostas a dar o seu voto, pela primeira vez, a um ou a outro, para castigar Sócrates. Eu era uma delas. É claro que Portas, apesar de ter dito que, caso fosse poder, não imporia aos portugueses os seus "princípios", quando confrontado directamente com a questão da reavaliação da lei do aborto, não pôde descartar a hipótese de o fazer, caso em que trairia todo o seu eleitorado tradicional: os muito betos e os muito incultos (características nem sempre tão distantes como parecem). Só que isto é assim: nos próximos anos, em termos de finanças públicas, quem quer que seja eleito não terá margem de manobra, refém do FMI e dos "auxílios" que aí vêm. E vai ser apenas nas pequenas coisas, iniciativas legislativas no domínio da política interna, não económicas e não financeiras, que quem quer que seja eleito vai poder "mexer". Mudar as leis caseirinhas, para as quais os que nos dão o dinheiro se estão mais ou menos nas tintas, coisas que não conflituam directamente com percentagens, taxas de juro, margens de erro e afins. No caso concreto da despenalização do aborto, a demagogia vai ser tanta que se calhar até conseguem convencer de facto a troika de que o dinheiro até agora dispendido em abortos legais é dinheiro que está a ser roubado à velhinha que espera há sete anos para ser operada à anca. Já há quem ande para aí com essas comparações desonestas e levianas. E é a argumentos falaciosos do género que Coelho e Portas irão recorrer quanto suscitarem, via "grupo de cidadãos preocupados", a necessidade de "reavaliar" a lei e o sei "impacto". Peanuts, tostões em termos de dívida pública, um rato que eles vão transformar na montanha. E eu, que senti na pele (no bolso, melhor) as medidas do PS, acho isto extremamente preocupante. Com dezanove anos, quase morri de um aborto clandestino, por isso, para mim a questão é pessoal e sobrepõe-se a mais ou menos xis euros no ordenado. Todos já sabemos que o ideial é a prevenção e a educação e que ninguém é a "favor do aborto", como eles gostam de dizer. But shit happens. E há que lidar com ela. Esta lei, aplicada com maior ou menor rigor, tem permitido salvar as vidas de muitas mulheres, por um lado e, por outro lado, acabar com o monopólio das clínicas de abortos clandestinos. Tanto as de vão de escada, que mataram muitas mulheres ou as incapacitaram para a vida, como as ricas, com clientes de luxo, que sujeitavam adolescentes grávidas a anestesias gerais e lhes faziam "raspagens", quando a situação poderia ter sido resolvida com dois ou três comprimidos, só para sacarem mais algum (bastante mais). Ou seja, o tirinho no pé de Passos Coelho vai-lhe custar muitos votos, à esquerda e ao centro. Aqueles socialistas chateados com Sócrates, que, tal como o resto do povo português, já não o podem ver à frente (porque é o que mais chateia nele é, de facto, o nunca ter admitido que errou e o não se ter demitido quando devia, assim demonstrando arrogância e incoerência), mas que ainda estão indecisos, vão ponderar o que é, de facto, mais importante, e o que é que, para além do que perderam com o PS, podem perder ainda mais com o governo de direita que aí vem. Em especial as votantes socialistas, como a que eu sempre fui. Uma coisa é certa: até posso votar no PAN, mas não vou conceder ao PSD nem ao PP uma maioria absoluta. Medo.