a felicidade é uma mesa cheia de miúdos com fome
Olho-te as costas enquanto sobes a ladeira à minha frente, a noite quase escura, e sei que não vou esquecer este momento, tal como não esqueci aqueles em que a subi com eles, o mais pequeno, pequenino demais, a pedalar muito depressa, as mãos papudas coladas ao guiador, um anjinho de capela sixtina; ou, recuando ainda um bocadinho mais, na cadeirinha agarrado ao pai, as pernas gordas abandonadas ao vento. Dávamos sempre duas voltas no chão de calçada do lado de lá do posto dois, aquele redondo. Duas voltas, meninos!, vá lá... E eles a curvarem cada vez mais por dentro, e mais e mais, como se assim driblassem a imposta condição. Hoje atravessei-o, ao chão redondo, mas rasguei-o a direito, os olhos cravados nas tuas costas a ver se me fazias chegar a casa e e se eu não ficava ali, caída, entalada na brecha que eu mesma acabara de abrir. Chegamos, por fim. Olho em volta o vazio e sinto que não tenho braços, tenho cotos. Agarro nas coisas com o esforço dos aleijados, viro a cara à passagem pelo quarto deles, mas teimo em tropeçar em gormitis, pokemons e soldadinhos de guerra: tudo serve ao mais pequeno para encenar desembarques na Normandia, batalhas de Dunquerque, que ocorrem corredor fora, à beira da piscina, em cima da mesa. E os aliados que nunca ganham, estão sempre quase quase, que ele gosta pouco de dar aos outros o gosto da vitória. De ti, meu querido, poucos vestígios. Talvez explique alguma coisa, isto, talvez os sinais que não consegui ver. Escrevo no verso de uma conta de supermercado e, no andar de baixo, outro dos meus amores que ainda resta fuma um cigarro e deixa-me em paz enquanto vomito o modo como hoje em dia te trago; abri o peito e, em vez de tirar qualquer coisa (um orgão qualquer, daqueles fundamentais, como fazem nos filmes de terror e a pessoa morre logo), enfiei-te cá dentro para ter a certeza de que nunca mais me foges. Só que, com o espaço que agora ocupas, nem consigo respirar, nem sequer comer; e ainda me faltam os braços, não te esqueças. Habituo-me mal ao mundo dos adultos: as minhas piadas são pueris, o meu linguajar, infantil, gosto dos alimentos molinhos e bem cozidos, penso demasiado em gelados e chocolates, que intercalo com gins tónicos para não me esquecer de que sou crescida. Lá em baixo o meu amor de maço vazio e a paciência consumida, ele que não entende esta minha necessidade de sacar das entranhas para fora e de as mostrar ao mundo, que coisa tão anormal. Mas vocês sabem do que falo. Arranco a última página em branco de um clássico da literatura que veio com a Visão, aquela última página mesmo antes da lombada, para poder continuar a escrever, quando me apercebo de que pouco mais tenho a dizer, a boca tão cheia de saudades, saudades, saudades. Cozinho panelas enormes de comida, bolonhesas e guisados que ninguém come e que impinjo aos amigos da minha filha que vão passando. A felicidade é uma mesa cheia de miúdos com fome.