a árvore perfeita
por Vieira do Mar, em 17.12.09

Fazia sempre uma árvore perfeita, que impressionava devidamente família e amigos. Mudava de decoração todos os anos. No fim de cada quadra, lá pelos reis, desfazia a obra de arte e empacotava os enfeites por cores, que depois atirava para um canto da cave e que, caso não fizessem pandam com os do ano seguinte, não mais usava. Por vezes repetia as luzes, e o presépio era na verdade sempre o mesmo, embora todos os anos lhe acrescentasse uma igreja iluminada, meia dúzia de figuras a caminho do menino, um ou outro pai natal animado ou mais um comboio em círculo, movido a pilhas, misturando o sagrado e o pagão numa histeria exibicionista de feira. Um ano depois, escolhia nova cor predominante e novo tema (consoante pendia mais para um natal sofisticado ou rústico), e percorria as lojas da especialidade, renovando o pinheiro gigante que lhes custara um balúrdio com bolas e fitas e estrelas novinhas em folha, ora tudo azul e dourado um ano, ora tudo verde e encarnado no outro. O seu bom gosto era indiscutível, e irrepreensível o apelo aos pormenores, ao detalhe. Nada ficava fora do lugar: as bolas eram milimetricamente dispostas, separadas por cores e tamanhos, as mais pequenas em cima, as maiores em baixo; havia ali uma noção perfeita do equilíbrio e da estética; poderia ter sido decoradora de interiores ou de montras, tal o aprumo e a harmonia do resultado final. Escusado será dizer que era uma tarefa solitária. As crianças apareciam no fim e apreciavam o efeito com ahs e ohs pouco interessados, olha desta vez a cor é diferente, há uns bonecos novos, a mãe tem mesmo jeito para isto. Durante a decoração propriamente dita eram gentilmente escorraçadas por ela, que não podia permitir que a espontaneidade infantil trocasse o lugar às estrelas, entortasse os ramos do pinheiro ou partisse as bolas de vidro soprado (caríssimas). Só no fim deixava que uma delas pusesse a estrela grande no cimo, e sempre sob a sua cuidadosa supervisão, pois o resultado não podia nunca ser menos do que perfeito. Mesmo assim, quando as crianças viravam costas, ia lá e compunha-a à sua maneira, dando-lhe toques para a direita e para a esquerda até a achar perfeitamente alinhada com qualquer outra coisa importante. Entretanto, a vida mudou-se-lhe e os enfeites dos anos anteriores foram-se acumulando na cave, fantasmas de natais passados, desperdícios empoeirados sem cor nem brilho (se uma luz se iluminar na noite e ninguém estiver lá para a ver, será que essa luz existe mesmo?). E o Natal voltou a chegar. Desta vez, não houve figurinhas acrescentadas ao presépio, nem enfeites milimetricamente dispostos, aliás, nem sequer houve presépio: a vida enrodilhara-se-lhe, dera voltas e mais voltas, e ela de cabeça para baixo a repensar as prioridades, o lugar das coisas e das não-coisas. Atiçara-se-lhe no espírito o cliché mais velho de todos e questionava-se com fervor sobre o verdadeiro significado do Natal. Ainda pensou comprar uma briga para rever os enfeites antigos e empoeirados, mas depois percebeu que não tinha lugar para eles em lado nenhum. Agarrou nos miúdos, entrou na loja chinesa mais próxima, comprou um pinheiro pequeno e barato cujas hastes pareciam piaçabas, de um verde enjoativo e brilhante, e deixou-os escolher bolas e fitas e estrelas. E eles escolheram-nas: amarelas, roxas, prateadas e azuis. E até umas pretas, sinistras, que pretendiam seguramente evocar qualquer coisa de design moderno mas que começavam a lascar mal se lhes tocava, deixando à mostra um dourado duvidoso. Compraram bonecos alusivos à quadra, figuras mal acabadas com o recheio de poliester à mostra, luzinhas de arroz e uma estrela amarela de plástico, que parecia feita a partir de um taparuere. Vieram para casa cheios de sacos e, todos juntos, compuseram uma polimorfia alegre e desastrada, uma erupção cromática sem lei nem ordem. Quando acabaram foram fazer panquecas. E ela não sabia nem quando nem como tal acontecera mas, num repente que afinal durara um ano inteiro, o caos e a desordem que se seguiram à perda haviam posto a descoberto o Amor.
(como um despojo arqueológico na maré vazia. um despojo de incalculável valor)