strawberry cheesecake
Resolvera voltar para o marido. Não aguentara a solidão, as recriminações familiares, o dedo de Deus a apontar para ela. Estava farta, dos longos interregnos em que deixava de ouvir os risos e as brigas das crianças, das mudas constantes de roupa, das refeições que saltava porque não tinha quem a acompanhasse. Sabia que, tal como havia sido ela a criar a situação, o nó górdio, facilmente o desfaria, bastariam um telefonema, uma conversa, um arrependimento sincero e uma demonstração de fé no futuro. Não aguentara, não saber o que a esperava no dia seguinte, nem as longas conversas com o advogado sobre a impossível divisão dos bens, mas, mais do que tudo, achava insuportáveis e dolorosas, as secas e frias trocas de palavras que agora exercitava com o marido, aquele que fora o seu homem de sempre. Odiava a sensação de estar sozinha, como se fosse uma faca de gume afiado e comprido que todas as noites se enterrava mais e mais no seu cérebro, fazendo-a sentir uma série de coisas desagradáveis, que iam desde o pânico à mais pura orfandade. O pior era quando o silêncio era tal que ela tinha de se confrontar obrigatoriamente consigo própria e com todos os seus medos. Aqueles momentos do dia em que os miúdos não estavam, o trabalho acabara e o telefone não tocava. O que é que eu vou fazer ? Perguntava-se. Se morresse aqui e agora, ninguém daria por nada, e daqui a uns dias encontrar-me-iam a apodrecer, provavelmente os miúdos, quando voltassem para casa. Pensava frequentemente que qualquer coisa era melhor do que aquilo, apetecera-lhe vezes sem conta rebobinar a vida e voltar atrás, ao momento antes de ter tomado uma decisão tão definitiva e de ter mudado a vida de tanta gente tão de repente, do pé para a mão. Sentia-se uma caprichosa, uma odiosa caprichosa, que descosera os bordos da família, já meia esfiapada das discussões, das mentiras e dos silêncios. A culpa soterrava-a em casa, em frente à televisão ou agarrada a um livro. Às vezes tinha pena de não fumar, de não beber, de não se drogar ou de fazer qualquer tipo de medicação que a atordoasse num estado de semi-imbecilidade, tal era a vontade de se alhear, de se entorpecer, de fazer o tempo andar mais depressa sem que ela desse por isso. Não tinha querido nada daquilo, pensara que tudo fosse ser muito mais fácil. A civilidade aparente da separação escondia um ressabiamento mútuo que latejava por entre os cumprimentos educados e a aritmética correcta quanto aos dias para cada um com os miúdos. Tudo muito pela rama e à superfície, para não despertar fantasmas adormecidos, mas que parecia resultar, por ora. De vez em quando, assaltavam-na uma espécie de saudades, não sabia bem de quê mas desconfiava, que ela não deixava que se desenvolvessem, atabafando-as de imediato numa qualquer lembrança cheia de rancor que lhe era, decididamente, muito menos dolorosa do que aquelas vontades súbitas de um corpo e as lembranças de um cheiro familiar, um cheiro de toda a vida. Resolvera voltar para o marido, fizera as malas e preparava-se para ir ter com ele e com os miúdos, estava decidido. Mas antes, fez um exercício mental; um exercício que se impusera a si própria desde que tomara a dramática decisão de que agora aparentemente se arrependia. Pensa, Rita, pensa, dizia para si própria, Pensa em quando estavas com ele, mergulha dentro de ti nesses momentos, lembras-te? Pensa no tédio, na indiferença, na vontade de não estares ali, nas camas separadas, na tristeza miudinha de te saberes a dormir com um estranho. Mas pensa, acima de tudo, na vida que existe para além de tudo isso, e que só poderás eventualmente descobrir se agora passares por isto. Desfez as malas, foi ao frigorífico, abriu um copo dos grandes de strawberry cheesecake, atirou-se para cima do sofá a ver um documentário sobre pinguins e pensou, logo à noite vou ao cinema.