"eu sou um cobarde..."
Ela pousou o livro na cama, o segundo da trilogia millenium, para ler um email que acabara de receber no telemóvel. Leu-o atravessado e à pressa, pois estava na parte em que se descobre quem assassinou o Dag e Mia; era uma declaração sincera e amigável, mas cobarde - não pelo que dizia mas por ter sido enviada por aquele meio, impessoal e distante, sem possibilidade de resposta imediata, de reacção adequada, de uma eventual explosão emocional (bastante razoável dadas as circunstâncias, aliás). Daquela forma, tinha seguramente custado menos a quem o escrevera: não havia confronto possível, nenhuma explicação adicional a dar, nenhuma hipótese de contraditório. Qualquer resposta que ela lhe desse, ficaria perdida por milhões de bites e bytes, e seria sempre um golpe em diferido, mole, sem a eficácia imediata e demolidora que pedem as declarações sinceras e amigáveis como a que acabara de ler. Apeteceu-lhe gravar no peito dele uma frase que o identificasse como pérfido e perigoso perante todas as mulheres que se lhe seguissem, à semelhança do que Lisbeth Salander fizera no torso do seu tutor, talvez qualquer coisa como "eu sou um cobarde que gosta de brincar com os sentimentos das mulheres", atravessado na diagonal. Felizmente que ela tinha ligado todos os sistemas de protecção, todas as firewalls internas, alertada por mais do que uma contradição, por uma mentira aqui e ali, por estranhos recuos após insinuações de ataque, por gente de fora que lhe tinha dito que não confiasse. Tinha o coração bem protegido, todo ele acolchoado, nem um bocadinho de fora para amostra, nada onde lhe pudessem tocar. É óbvio que se abriu, e confiou e deu, mas porque lhe ensinaram que a reciprocidade pode ser um valor moral a preservar em certas circunstâncias, e que quando se recebe, tem de se dar qualquer coisa em troca. E, apesar de tudo, ela recebera algo. Recebera, por exemplo, uma espécie de amor aleijado; um amor intermitente que só lhe chegava a espaços, mas sempre de forma violenta, como se uma espécie de ultimato. Era algo que a assustava e a retraía, que a fazia esconder-se por detrás do riso e de uma falsa segurança, que exibia perante ele como uma parede de tijolo. Mas depois arrependia-se, pois ele, em todo o seu desnorte, acabava por ser-lhe sincero, devoto, quase fiel. E então, um dia, ela disse-lhe tudo; despejou literalmente a sua vida na cabeça dele, e ele que fizesse o que quisesse. A partir desse momento, julgou ela, passara a haver um laço indissolúvel que os unia, a partilha dos segredos, das inseguranças, dos medos. Agora, ao olhar para aquele email, definitivo e manso, dava graças por ter mantido o coração abotoadinho durante todo o processo, caso contrário estaria a sofrer que nem um cão vadio. O que não invalidava a crueldade objectiva da situação por ele criada e alimentada, como se alimenta um animal selvagem em cativeiro. "Eu sou um cobarde..." pensava ela ao rasgar-lhe a frase no peito, uma e outra vez. E, como Lisbeth Salander seguramente faria, virou-lhe as costas, saiu e bateu com a porta sem sequer olhar para trás.