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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

de passagem

por Vieira do Mar, em 12.01.17

Estas coisas começam sempre da mesma maneira. Amigo de amigo, coincidência em festas, férias e jantares. Giro, muito giro, preenchia algumas das suas fantasias fetichistas mais inócuas. Sempre tivera um fraco por executivos motards, que escondem o fato por baixo do blusão negro de cabedal. Talvez fosse uma segunda pele, anarca, arrivista e perigosa: a verdadeira, pensava. Depois, durante anos, as conversas virtuais em que se amaciavam taco a taco com provocações e tiradas espertas. Tudo tão já visto, tão cliché e, mesmo assim, relativamente excitante. Ao princípio, só os almoços juntos permitiam um ligeiro acento sexual, nunca verbalizado, e a sensação daquele lugar comum de que um dia, mais tarde ou mais cedo, teria de acontecer. Claro que expectativas foram criadas e situações, fantasiadas. É esse o problema dos amigos que se atraem: criam uma bolha imaginária onde tudo pode ser possível, e não se poupam à grandiosidade do cenário. As piadas, os olhares, a intimidade que surge do próprio acto de serem amigos, quase confidentes, são sempre promessas do que realmente nos apetece. Quanto mais tempo dura o limbo da atracção, maior a confabulação relativa ao que pode acontecer um dia, num qualquer alinhamento perfeito de estrelas. E esse dia chegou. Anos depois, ele agora descomprometido, ela também, e tudo se conjugou para, bem, para qualquer coisa. Uma casa disponível, um pedido de guarida, uma coincidência geográfica, claro que podes cá dormir, tenho vários quartos, melhor, vem jantar que eu cozinho. Embora tenhamos que gerir as nossas próprias expectativas, que por essas alturas estão elevadíssimas, pois o tempo é amigo da imaginação, também há que estar à altura dos sonhos molhados dos outros, e quem diz que não o faz, mente. A urgência centra-se no agradar e para isso seguimos às apalpadelas porque não sabemos bem do que o outro gosta ou detesta em nós; só sabemos que nos queremos levar para a cama e que nos demos a algum trabalho para tanto. Somos compelidos a criar um personagem que se adeque àquilo que achamos que esperam de nós, é fatal como o destino. Mesmo que de forma inconsciente, ninguém quer estragar um momento esperado por dá cá aquela palha. Neste jogo, há que cuidar dos desvios súbitos e atermo-nos ao plano, mesmo que este seja o improviso. Na ignorância, ela resolve disfarçar-se de si mesma e põe-se bonita, mas com uma singeleza de verão. Ele chega, e o comportamento é de amigos recentes, com alguma cerimónia. Jantam cá fora no jardim, está uma noite quente, a conversa balança nas sombras das chamas das velas, mas o romance teima em não chegar. Bebem muito, empurram-se por cima da mesa, ela arremessa-lhe os ombros nus, forçam a lassidão dos corpos e o atrevimento das palavras. Impaciente e quase enfastiada, ela levanta-se da cadeira de plástico e desce até à boca dele, dando-lhe um beijo, que é longo e lindamente correspondido. Mas, depois disso, volta a sentar-se, a conversa continua e as camas lá em cima vazias, os lençóis por desmanchar. Às tantas, ele diz-lhe: “Porque é que te pintas de forma tão carregada? Faz-te os olhos mais pequenos, devias deixá-los ao natural, não te fica bem”. Ela não acredita no que está a ouvir e ele nem percebe a bomba nuclear que acabou de rebentar na mesa, arrasando com tudo quilómetros em redor. “Achas?”, pergunta-lhe em jeito de metáfora, pestanejando o rimmel preto que lhe realça as ralas pestanas louras. No fundo, a dar-lhe uma segunda hipótese. “Acho. Ficava-te melhor”, responde-lhe ele com aquela literalidade tipicamente masculina a que gostam de chamar frontalidade, ou "a única coisa que sabemos fazer". Ela levanta-se, passa por cima dos despojos radioativos espalhados na relva, pede-lhe desculpa e vai à casa de banho, onde retoca com perfeição o risco negro dos olhos, já a derreter-se com a humidade quente da noite. Volta fria e sorridente, e olha-o com uma condescendência feroz, pois ele não lhe importa o suficiente para ficar sequer ofendida. Numa ignorância abençoada, ele continua a conversa mais um bocado até ambos se confessarem cansados. Sobem as escadas e ela oferece-lhe o quarto de visitas. Obrigado, até amanhã. Meia hora depois, já quase a dormir e ele aparece-lhe no quarto, senta-se na cama e diz-lhe que acabou por não dar seguimento àquele beijo no jardim, erro que pretende expiar. Ela atira-lhe com uma gargalhada abafada pelo lençol, “Desculpa, estou com tanto sono que nem tirei a maquilhagem. Até amanhã. Dorme bem. Quando saíres não me acordes”.

dezassete

por Vieira do Mar, em 05.01.17

Tu não és fácil de explicar mas também quem me manda a mim, mais um texto piegas a cada ano que passa e eu não sei se vamos para melhor, só sei que cresces tanto que se me dói o pescoço olhar-te nos olhos. Podia inventar o mar de rosas que é ser mãe, esconder as penas atrás de um uma argamassa de sorrisos babados,  ou então desvendar o fardo, para que todos vejam que não é o diabo que os carrega, somos nós. Ou talvez tentar um meio termo, vá, meet me half way e vais ver que até gostamos do outro quando os dias não estão de chuva. Cresceres não é a melhor coisa do mundo, desculpa lá. Mais um ano e todos os meus filhos serão maiores e vacinados, e tu também vais começar a dizer-me não,  legitimado por uma ilusão chamada maioridade legal. Se quiseres, podes fazer a trouxa, bater com a porta e nunca mais olhar para trás, que nem a polícia me poderá valer. Nasceste  a ironizar a tua própria existência, sempre parco na marmelada, que isto cada um leva com o que dá e o nosso problema era meramente logístico: demasiado forte, grande e independente; no fundo a acharmos que os outros precisavam mais de colo do que tu. Se calhar por isso nunca gatinhaste e puseste-te logo de pé;  como Atena, nasceste adulto, poeira e vento, pancada e guerra, número impar, comida sólida, a mão dada ao irmão mais velho com medo que ele atravessasse a rua sem olhar para os lados. Um riso demasiado, sempre pronto, a alegria a soltar-se por entre a falha nos dentes de leite, num mundo só teu que nos davas a honra de partilhar quando bem te aprouvia. Mas magoaste-te um bocadinho e agora aceitas melhor o meu colo, como se finalmente precisasses dele. És resposta pronta e afiada, és o sarcasmo inesperado; és irónico e tens muita piada, mas hoje andas muitas vezes sorumbático (a vida entretanto não te foi de modas), a não ser quando alijas por momentos o fardo que carregas, como se despejasses detritos ao rio, e então respiras melhor. És preguiçoso quando se trata de procurares o que te faz feliz, mas és prestável, um pacificador, e tens uma alma boa como a de um passarinho, por isso não te entendo quando cospes amargura e um tornado de espigas louras se alevanta do nada, abatendo a frágil pirâmide humana na qual nos sustentamos uns aos outros. No silêncio custas-me mais. Às vezes, acho que nada sei sobre ti. Mas é só porque não finges, e a verdade é algo de que os adultos se vão esquecendo de reconhecer com os anos. Não tens a  sobrecapa dos outros, que já perderam suficiente inocência para conseguirem agradar ou ferir de propósito. És honesto no teu silêncio de dias, e eu sei que não o fazes por amuo ou outra qualquer estultice, o que me assusta, porque tudo em ti se tornou demasiado sério. És criterioso como um homem de cinquenta anos, que faz um novo amigo a cada cem pessoas que conhece; não papas grupos, não te revês em modas, e resistes teimoso, mesmo que o resto do mundo pense o contrário. Depois, há dias em que não te calas, e é o mundo e a síria, e os hackers e o espaço sideral e o stephen hawking, a professora de francês, chernobyl e as letras dos avenged sevenfold, a bateria, e a canção que compuseste no piano, o miúdo da turma do lado, o filme que viram na aula de alemão, os chocolates que me compras, o beijo furtivo na testa,  e aquele vídeo no youtube que tenho mesmo que ver. E eu não consigo acompanhar-te na corrida que é essa cabeça que de repente  se abre como uma flor carnívora que se cansou de mastigar as coisas e agora regurgita os restos. Bem tento, apanhar tudo do chão, de gatas, de costas, a fazer o pino,  a tentar compor um puzzle que me faça sentido. Tudo cá para fora, porque entretanto o silêncio foi demais, porque ninguém sabe dos teus pesadelos, porque, porra!,  a vida afinal é bonita, e toca de vomitar palavras, já que vieste com o dom de as usar. Quando nasceste não dormias. Durou um ano. Mudei tanto que até mudei de feições: agrosseiraram-se, com os esgares penosos da vigília permanente;  ganhei esta ruga entre as sobrancelhas, como se sempre apreensiva, e estas olheiras cavadas como um buraco na terra. Não choravas, eras um acordado feliz, só não dormias porque se sobrepunham outras necessidades mais fortes, como comer e falar. Desde que te conheço que tento perceber o que dizes, com tanta convicção. Um grande, gordo e pesado bebé louro, um anjo da capela sistina, ao meu colo a noite toda, como um conviva numa jantarada de amigos, só comes e bebes e conversa e risos. Mas no qual a anfitriã está tão cansada que já só imagina o convidado tagarela na rua. Houve um laço, melhor, um nó górdio, que se formou naquelas noites frias de inverno em que te embalava entre mamadas e conversa, para não acordares os teus irmãos. Adormecia de cansaço por segundos e tu rebolavas para o chão, onde eu te encontrava, a saltar do sono em pânico, deitado a falar contigo mesmo, sem chorar. Sempre choraste pouco, fazias barulho de outras maneiras, nasceste com tantas palavras dentro de ti, que tinhas que te livrar delas a toda a hora. Geres com imensa discrição a revolta do abandono. Tempos houve em que descobria cá em casa um móvel esmurrado, um vido partido, uma parede raspada, um livro rasgado. Ninguém te ouvia a fazê-lo; negavas sempre, mas eu sabia e nunca me zanguei, até porque tinhas toda a razão. Foi naqueles tempos em que do teu quarto só chegava silêncio, tu e os auscultadores enterrados nos tímpanos, para abafar os ruídos da dor. Quando aprendeste a articular as palavras que te assoberbavam, precoce como em tudo, conjugavas os verbos no pretérito perfeito e eras uma atracção de feira. Pouco depois estavas a escrever a a fazer contas de cabeça. Talvez por isso ainda hoje, quando te peço que exibas os teus talentos para a família e amigos, declines inabalavelmente o convite e me vires as costas com uma espécie de mágoa. Embora continues a disparar as piadas mais certeiras do mundo, aquelas que fazem sucesso nas festas embora nem sempre agradáveis para os alvos escolhidos, mas só quando te apetece. Entretanto, cresceste que te fartaste. Cada vez mais sério e ponderado (apenas no que te convém),  dás-me conselhos telegráficos que me deixam dias a pensar, raisparta o puto. Mas os animais ainda te adoram, e seguem-te como a Pã. Como o galo Simpatias, que era quase do teu tamanho mas andava ao teu ombro todo o dia, quando tinhas quatro anos, lembras-te? Ou os gatos ariscos que ronronam só para ti e os cães ferozes que te abanam o rabo. Estás um homem (venha daí mais um lugar comum). Mas eu continuo e continuarei noites e noites acordada a tentar perceber a tua tagarelice, o que me queres dizer,  que raio tudo isto significa para ti, incluindo eu. Vamos partir o mundo?, costumavas dizer ao teu pai. Bora, Joãozinho, vamos partir o mundo!, alinhava ele. Não chegaram a partir o mundo juntos, talvez por isso os armários, os vidros e as paredes. Eu não partiria o mundo contigo, desculpa, para isso não sirvo (como para tantas outras coisas). Mas parti-lo-ia por ti, isso sim. Amo-te, Joãozinho (e não reclames do inho, que tamanho não é documento).

joaonodo.jpg

As the boy became a man
In came a calm sophistication I can hardly understand
So lost in ego, didn’t notice when the time had slipped away
(Yeah, everybody’s got a sob story)
(…)
Who is the crowd that peers through the cage,
As we perform here upon the stage?

(Avenged Sevenfold)

 

 

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