Alvaiázere
Éramos como irmãs; eu, mais velha, a fazer-me valer do posto da idade, na brincadeira mando eu, tu só compras, escolhe o que queres que eu é que mexo na máquina, carrego nos botões, faço plim!, encho os sacos e dou o troco; "boa tarde senhora dona sofia, queria um quilo de batatas se faz favor!". Mas depois vinham as férias na quinta do tio Lalá, que era uma quinta mesmo, não como nós agora dizemos “eu tenho uma quinta”, sinal de genealogia remota ou abastanço recente, ladeada de lounges, piscinas e labradores decorativos. Não, era uma casa no campo rodeada de imenso terreno, auto suficiente em tudo menos na água potável, que a caseira ia diariamente buscar à nascente próxima, de cântaro à cabeça, que equilibrava por entre as veredas espinhosas. Um sítio de trabalho duro: a mula puxava a carroça, os carneiros e as ovelhas davam leite que, misturado com o cardo, se transformava em queijo; e, ao domingo, davam-nos a carne com a qual os da casa agradeciam a Deus. Havia uma adega na cave, gelada e escura, com pipas gigantes onde envelhecia um vinho medíocre que os mais velhos bebiam acriticamente, alheios a castas e qualidades do solo: se touriga ou trincadeira, se calcário, granítico ou arenoso, todas as uvas iam para o mesmo lagar e eram embarricadas sem grandes cuidados, até produzirem um vinho meio azedo que não resistia à humidade que escorria pelas paredes da cave. Era aí que tomávamos banho, entre as pipas molhadas, uma vez por semana, com um panelão de ferro aquecido na grande lareira da cozinha à volta da qual a vida corria, temperada com a água fria do depósito que periclitava acima das nossas cabeças. Às vezes, sentíamos as ratazanas a fugir por entre os nossos pés, assustadas com o barulho da água, e fartava-mo-nos de rir. Não havia açúcar e os doces eram feitos com mel, das colmeias demasiado perto da casa, mas cujo assalto valia a pena porque ficavam debaixo da maior amoreira que já vi, com umas amoras que esborrachávamos com as mãos para nos tintarmos de vermelho escuro enquanto brincávamos às vampiras salteadoras. Rebolávamos literalmente no palheiro, a beber leite das tetas das ovelhas, que me lembro ser espumoso e adocicado, e eu ficava com umas babas enormes da palha, que me davam uma comichão doida, mas que coçava às escondidas porque ainda levava um sopapo se me queixasse de tal picuinhice, menina da cidade. De manhã íamos ao galinheiro, eram centenas de galinhas cujos ovos postos vinham em fila até nós, que arrumávamos nas caixas, prontos para os feirantes que os viriam buscar. Ao pequeno almoço abusávamos do que havia, claro: gemadas cheias de mel, broas quentes com frutos secos, leite morno das cabras prenhas. Coisas que hoje matariam de choque qualquer nutricionista. A casa em si, e todo o ambiente circundante, parecia uma mistura de subcultura mórmon com amish: os semblantes condizentes com a ausência de alegria, com o peso do castigo e da frugalidade obrigatória. Mesmo assim, as miúdas da cidade faziam teatros, reuniam patrões e empregados no anfiteatro improvisado que era a eira onde se debulhava o trigo. Distribuíam folhetos desenhados à mão com o programa, cheio de atracções espectaculares, vinte e cinco tostões cada e à cabeça, e cantavam as cantigas das novelas, imitavam a Beatriz Costa, e a roliça atrevida (adivinhem qual?) dançava ballet, distribuindo pliés desequilibrados pela escassa assistência. Estranhamente, conseguíamos arrancar alguns esgares sorridentes àquela gente empedernida pela solidão de não conhecerem mais nada. Sisudos e desconfiados, achavam-se a perder tempo, com a terra por arar, os bichos por ordenhar, a fruta por apanhar. Mas o melhor do mundo são as crianças e eram todos tementes a Deus: há muito que haviam reservado o seu lugar na plateia do céu, e não o quereriam perder para nenhuma lateral em pé. O azeite, também lá produzido, era tão ácido que arranhava a garganta por um dia inteiro, mas vinha das azeitonas que por sua vez vinham das oliveiras e eram esmagadas na prensa de pedra construída ao pé da estrada, que os vizinhos também usavam a troco de fruta e mais azeite. No meio do pinhal, do outro lado da estrada, onde nos entretínhamos a colar os dedos com a resina que escorria dos troncos feridos para os vasos de barro, havia um laranjal secreto, com enormes laranjas da baía, que abríamos e deixávamos escorrer pela boca e pela cara, empoleiradas perigosamente nos ramos mais altos, numa encenação sensual quase transgressiva. Na eira, que era o teatro, debulhava-se o trigo que depois era moído e com o qual a caseira fazia o pão e as broas em forma de bonecas, "Esta és tu, esta é a Catarina...", com passas no lugar dos olhos e sapatos feitos de nozes. Os gatos eram às dezenas e a indiferença era mútua entre estes e os restantes seres vivos, mas cão só havia um e chamava-se Mondego, ou não estivéssemos nas beiras. Um rafeiro feioso e feroz, preso a uma trela curta que o obrigava a enroscar-se na lama quando dormia, até que as miúdas da cidade venceram os senhores da casa pelo cansaço e conseguiram que o Mondego passasse para a varanda de madeira, com um tecto e tudo, onde virou um doce tal que abanava a cauda quando nos via, deixou de ladrar, de ir às canelas e até de matar gatos. Pareceu-me até que se passaram a cumprimentar civicamente, com subtis toques de cauda, até um dia cair para o lado, retesado e gordo de tão morto mas com um sorriso feliz. Dentro da casa principal havia uma sala de jantar muito bonita, toda em madeira de pinho, com umas janelas enormes que davam vista para a encosta de vinhas que acabava na estrada onde começava o pinhal. Tinha uma mesa muito grande, como as de um castelo medieval, com bancos corridos, rústica e empoeirada, que nunca era usada, mesmo quando toda a família se reunia. Como se gostassem de ter a perspectiva do prazer à espreita, para lhe poderem resistir. Comíamos na mesa da cozinha, o centro da casa, e os serões eram passados no banco da lareira grande, até à hora sagrada da novela, vista numa sala de estar cujos sofás eram cobertos de plástico, para que não nos sentíssemos confortáveis demais. As refeições, excepto aos domingos, eram pratos cheios de legumes, arroz e enchidos, regados com o tal azeite que escorria de uma almotolia enorme que passava de mão em mão (primeiro os mais velhos) e que equilibrávamos com muito cuidado para não nos sair mais do que uma gota, que aquilo dava uma azia danada. O pater familias era um velho severo e conspícuo, cujo único sinal de excesso era a barriga saliente, aplanada pelos suspensórios repuxados, mas cujos pneus lhe fugiam, rebeldes, pelas laterais. Usava sempre o mesmo colete, de cujo bolso retirava com frequência, e não com menos mistério, um relógio de corrente, no qual sondava as horas com um ar sério e quase cruel, como se contasse os minutos para dar uma ordem de enforcamento. Nunca falava, e nós engolíamos à pressa os grelos cozidos, sentindo na pele o seu olhar baço, ampliado pelo monóculo empinado nas verrugas do nariz. Mas, na maior parte do tempo, éramos livres. Não tomávamos banho, mal lavávamos os dentes, emporcalhava-mo-nos com os animais, comíamos uvas, laranjas, figos pinga-o-mel, dióspiros; subíamos às árvores, caíamos, bebíamos a zurrapa das pipas às escondidas, escorripichávamos o licor caseiro que ficava no fundo dos copos em dias de festa, e fugíamos dos insectos, que sinceramente me pareciam amazónicos e me custaram algumas palmadas perante a recusa em partilhar com eles o mesmo espaço Ah, os caprichos da menina da cidade!, pensava a minha tia, que passava do fervor amoroso ao rancor, consoante os humores do seu útero ressequido. Felizmente havia o meu tio. Escolhido, de seis irmãos, para ser o padre, garante necessário da continuidade da Fé e da prosperidade das colheitas, a vida trocou-lhe as voltas quando conheceu uma hospedeira alta de olhos verdes, ex menina de sacristia, muito devota, que guardava os caderninhos onde declarava o amor a Deus debaixo do colchão do convento, ansiosa no fundo para que alguém lhe arrancasse as amarras da genuflexão e da culpa, o que o meu tio fez, aliciando-a para as fileiras do comunismo. E assim lá se vai o padre e lá se vai a beata, com Marx na bagagem, a caminho da clandestinidade, o pequeno apartamento de Lisboa revirado pela pide vezes em conta. Voltaram de Angola em 1974, com dois horríveis papagaios para cada uma de nós, as sobrinhas. Só um sobreviveu, para nos morder religiosamente com um ódio rançoso até ao dia em que morreu de velhice (ou de saudades do meu tio, quem sabe). O meu tio, esse, tinha muitos cursos, e acabou professor de história num liceu da periferia. Sabia que se fartava e nós, miúdas, bebíamos daquela sabedoria como do leite morno das ovelhas. Estávamos no centro do país, mas ele conhecia uma serra que palmilhava desde pequeno, onde repousavam fósseis marinhos de há muitos milhões de anos, quando o mar ali parara, escondidos nas silvas e no cascalho. De farnel às costas, lá partíamos de madrugada para a grande aventura, de olhos postos no chão à procura de conchas e afins, que teríamos de arrastar connosco o resto da subida, até chegarmos a uma caverna pré histórica curvada pelo peso dos morcegos, que se agitavam lá dentro num negrume sibilante. Esta parte já não sei se é verdade, mas na pedra à entrada onde nos sentávamos a descansar, falávamos de desenhos nas rochas, que o meu tio nos dizia serem pinturas rupestres que mais ninguém conhecia; ainda hoje não sei se lá estavam mesmo, se era poesia ou se ele o dizia para nos evitar a desilusão de serem apenas grafitos feitos por alguém que lá chegara antes de nós, assim quebrando a magia que era a nossa sensação de conquista. Chegávamos a Lisboa cheias de babas, picadas de insectos, cabelos empastados, joelhos esfolados, fígados a rebentar, cotovelos gretados, engripadas e com as roupas rasgadas. E cansadas de atravessar o país numa Dyane a quarenta à hora com um buraco no chão (cuja diversão era evitar que a ponta dos nossos sapatos tocasse o asfalto que nos fugia), encafuadas no lado direito do carro porque o papagaio ia do lado esquerdo, no ombro do meu tio, e ficava nervoso com as curvas. Mas vinha feliz, com um saquinho de plástico cheio de amonites aninhado no meu colo, desenterradas à unha da terra dura, que, como jóias valiosas, expunha milimetricamente na minha prateleira de fórmica, assim que chegava a casa. Depois, obrigava os meus amigos da rua, os rufias das biclas com quem fazia corridas pelos Soeiros acima, a excursões para apreciarem as minhas espirais de Fibonacci, ao que acediam contrariados, vendo-se perfeitamente que me achavam tão maluca como quando lhes dizia que queria ser bailarina. O que era perfeitamente compreensível, se atentarmos na fotografia infra.