o dia em que o medo ficou para trás
Na manhã de 25 de Abril de 1974 eu estava em casa com a minha mãe. Tínhamos um estranho rádio rectangular que se estendia no cimo do frigorífico, num canto da cozinha. Sentia-se qualquer coisa no ar e as notícias sucediam-se, inconsistentes e confusas. O país agitava-se lá fora e nós duas, presas naquela pequena cozinha, num apartamento que então era quase periferia, esperávamos. Eu esperava porque a via esperar. Sabia da Pide, pelas intempestivas revistas aos livros na estante de fórmica da sala; Sartre, Neruda, Marx, Moravia, Beauvoir, Sophia, tantos outros; e aos discos de Zeca Afonso, Carlos Paredes, Joan Baez, às canções francesas, e às cortinas de crochet feitas pelas minha avó, não fossem esconder subversões na sua transparência. No andar de baixo, os meus tios, recém retornados e comunistas activos, sofreram mais na pele, mas deles só recordo, na altura, o silêncio. Ao fim de algumas horas de nervos e ignorância (o meu pai havia saído para trabalhar), aconselham-nos a ficar em casa porque estaria a decorrer um golpe de Estado, feito por militares. Alguém falou no quartel do Carmo. Ficar em casa. Não sair, podia ser perigoso. A minha mãe enfia-me um casaco à pressa, pega-me na mão, e saímos para a rua, com a urgência da liberdade prenunciada. Nesse dia, acenámos aos chaimites, recebemos sorrisos e munições que não mais serviriam para matar. Ainda a Revolução ia em curso, e já deixáramos o medo para trás.
(a minha mãe, belíssima, sempre na linha da frente)