quando quase me esqueci de ser puta*
Lembro-me vagamente de me abordares. Já tinha snifado uns riscos para aguentar alegre o pesadelo de mais uma noite. E bebido uns copos, também, com as minhas colegas de desgraça, irmãs de sangue, abalançados com uns tremoços na tasca da esquina, a esquina onde atacamos, antes de sermos atacadas. Tinhas no olhar um desespero de fome que me meteu medo e que ao mesmo tempo quis decifrar, para ver se igualava o meu. Levavas uma garrafa de whisky na mão como se agarrasses um filho pequeno a atravessar a rua, e tinhas um pequeno corte num dos dedos, que não soubeste explicar. Meti conversa a ver se me te vendia, mas estavas incoerente e agreste, ao mesmo tempo que me enrolavas os cabelos louros com o dedo ferido. Tive pena de ti. E tesão. Pelo teu ar despenteado, pela barba por fazer, pelo teu olhar além, no infinito das coisas. Perguntei-te onde moravas e acompanhei-te a casa com a bondade de uma freira, esperançosa de que não tivesses bebido tanto que não o conseguisses pôr de pé. Tirei folga de mim própria, naquela noite não queria dinheiro, queria mergulhar mais e mais no nada, mais do que quando era esbofeteada e a minha cabeleira oxigenada arrastada por camas piolhosas, por clientes sem cara. Pareceste-me então o parceiro ideal para a escuridão. Fomos bebendo pelo caminho, apoiando-nos um no outro, e quando chegámos a tua casa despimo-nos como se a roupa que trazíamos fosse radioactiva, atirada para um canto, para desinfecção. Investiste contra mim com as dores de todos os mártires pulsando em ti; ambos perdidos, tresmalhados, à procura de um bocadinho de alma nos recantos molhados do outro. É claro que nada encontrámos. Eu, como sempre, fingi que te amava e que me vinha – só assim suporto o que faço, o que me fazem – e acariciei-te os caracóis como uma noiva, quando adormeceste enroscado numa qualquer parte sufocada do meu corpo gasto. Pouco tempo depois, como se o inconsciente nos mostrasse a verdade, demo-nos as costas e afastámo-nos para cada canto da tua cama. Quando acordaste e te ouvi pegar na garrafa e emborcar o que dela restava, fingi-me dormida. Sóbria e ressacada, senti nas minhas costas o sopro do teu coração gelado e nem me atrevi a mexer. Só quando ouvi a tua respiração pesada me levantei e, pé ante pé, enfiei desastradamente a minha roupa barata e saí sem bater a porta. Nas escadas, pensei: “Foda-se, podia ter-lhe roubado a carteira”.
*para um amigo