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Tivera um sonho estranhíssimo. Sonhara que era uma marginal, talvez adolescente, que saía de casa às escondidas com propósitos prevaricadores, embora indefinidos. Lembra-se de um assalto, de fumar charros com a seita num cais à noite, de ouvir o mar a bater contra o molhe velho de cimento e ferro, o tom alaranjado da ferrugem a aparecer, acicatado pela lua cheia, enquanto o resto tudo negro, caras em esboço, risos intermitentes. Lembra-se do sexo com outra mulher dentro de um volkwagen carocha, que por acaso era um das suas melhores amigas da adolescência, não sabe qual. Estava sentada sobre ela no lugar do passageiro, e era uma mulher-homem pois enterrava-se na outra, embora o seu prazer fosse de mulher: uma explosão concêntrica que se esvai, difusa, até ao ponto mais afastado de si, como uma pedra que cai à água formando círculos cada vez mais largos. Isto pensou ela mais tarde, pois não sabe como se manifesta o prazer no homem, apenas o imagina mais concentrado no membro do que nos recantos menos diagnosticáveis do corpo. Depois, o cenário mudou. Estava na casa dos pais, havia muita gente e ela era responsável por tudo. Por uma estranha razão, daquelas que só existem nos sonhos porque não se sabem, viera muita gente para almoçar, inclusive o seu patrão que, afinal, era amigo do seu pai. Como se a emancipação feminina não existisse, todos clamavam pelo almoço e ela, aflita por cumprir os seus deveres, sai à rua levando o pequeno cão nos braços e, de repente, está numa espécie de charcutaria atulhada de gente, onde todos se empurram para serem atendidos no talho. Na espera, solta o cão e este desaparece. Durante uma eternidade de sonho, segundos na realidade, procura desesperadamente o bicho debaixo das cadeiras, das mesas, dos armários, gritando o nome dele acima do sururu da multidão. As emoções sucedem-se: a culpa, a aflição, o desespero. Lembra-se de pouco mais, excepto do barulho e da multidão crescentes; da culpa e vergonha de falhar com o almoço e da sensação de o cão lhe ter ido para sempre. Foge-lhe a terra dos sonhos debaixo dos pés e acorda com o coração na boca, de olhos esbugalhados para o outro lado da cama onde o cão dorme, impávido e indiferente ao turbilhão emocional da dona. Ela arrasta-se pelos cobertores até o alcançar e abraça-o, quase esmagando o seu pequeno corpo, arrancando o bicho de um sonho que provavelmente apenas metia campo, margaridas e a perseguição de borboletas. Estrafega-o e ele debate-se, assustado pela urgência furiosa daquela pessoa que habitualmente o protege dos medos. Levanta-se e, sempre de bicho contra si, vais aos quartos ver se está tudo bem, como uma freira aos dormitórios e constata que os filhos e os amigos dormem pesados, uma multidão de sábado à noite que sempre cracha no chão livre da casa. Psicanaliza-se rapidamente, apaziguada a onírica perda, e percebe o apelo da delinquência tardia e de deixar as responsabilidades para trás: cereais às sete da manhã, picar o ponto às nove, o flirt respeitoso com o colega do lado, a tia dos amigos dos filhos, a cozinheira de caserna, a chófer dos sábados à noite, o tailleur, o avental. Ficara-lhe, no entanto, uma coisa por explicar: ela, um homem de violência penetrante num carocha desconhecido e o prazer de mulher com uma mulher da sua infância, as virilhas ainda molhadas enquanto estrafega o canito. Mas isso ficaria para depois. Agora, era os cereais com leite e passeá-lo à rua. À trela, desta vez.
Comentários abertos. Digam tudo o que vos vai na alma. Aviso que só não publico anónimos cobardolas. De resto, vale tudo. Força! ;)
Este blogue é muito bom.
http://umamoratrevido.blogs.sapo.pt/53578.html
Lembro-me vagamente de me abordares. Já tinha snifado uns riscos para aguentar alegre o pesadelo de mais uma noite. E bebido uns copos, também, com as minhas colegas de desgraça, irmãs de sangue, abalançados com uns tremoços na tasca da esquina, a esquina onde atacamos, antes de sermos atacadas. Tinhas no olhar um desespero de fome que me meteu medo e que ao mesmo tempo quis decifrar, para ver se igualava o meu. Levavas uma garrafa de whisky na mão como se agarrasses um filho pequeno a atravessar a rua, e tinhas um pequeno corte num dos dedos, que não soubeste explicar. Meti conversa a ver se me te vendia, mas estavas incoerente e agreste, ao mesmo tempo que me enrolavas os cabelos louros com o dedo ferido. Tive pena de ti. E tesão. Pelo teu ar despenteado, pela barba por fazer, pelo teu olhar além, no infinito das coisas. Perguntei-te onde moravas e acompanhei-te a casa com a bondade de uma freira, esperançosa de que não tivesses bebido tanto que não o conseguisses pôr de pé. Tirei folga de mim própria, naquela noite não queria dinheiro, queria mergulhar mais e mais no nada, mais do que quando era esbofeteada e a minha cabeleira oxigenada arrastada por camas piolhosas, por clientes sem cara. Pareceste-me então o parceiro ideal para a escuridão. Fomos bebendo pelo caminho, apoiando-nos um no outro, e quando chegámos a tua casa despimo-nos como se a roupa que trazíamos fosse radioactiva, atirada para um canto, para desinfecção. Investiste contra mim com as dores de todos os mártires pulsando em ti; ambos perdidos, tresmalhados, à procura de um bocadinho de alma nos recantos molhados do outro. É claro que nada encontrámos. Eu, como sempre, fingi que te amava e que me vinha – só assim suporto o que faço, o que me fazem – e acariciei-te os caracóis como uma noiva, quando adormeceste enroscado numa qualquer parte sufocada do meu corpo gasto. Pouco tempo depois, como se o inconsciente nos mostrasse a verdade, demo-nos as costas e afastámo-nos para cada canto da tua cama. Quando acordaste e te ouvi pegar na garrafa e emborcar o que dela restava, fingi-me dormida. Sóbria e ressacada, senti nas minhas costas o sopro do teu coração gelado e nem me atrevi a mexer. Só quando ouvi a tua respiração pesada me levantei e, pé ante pé, enfiei desastradamente a minha roupa barata e saí sem bater a porta. Nas escadas, pensei: “Foda-se, podia ter-lhe roubado a carteira”.
*para um amigo
Downton Abbey é a série do momento. Caiu no goto de muitos, em especial dos quarentões saudosistas (como eu) de Bridshead Revisited ou Upstairs, Downstairs, antigas séries de época que, pela sua minuciosa reconstituição, excelentes actores e boas histórias (a primeira, baseada no excelente romance de Evelyn Waugh), foram no seu tempo uma pedrada de bom gosto no charco dos kits, macguivers, e séries de god cops/bad cops que inundavam o ecrã (nada contra, vi-os todos). Uma espécie de livre-passe para a dita intelectualidade portuguesa, que tinha vergonha de admitir que via televisão, esse ópio do povo. Hoje os tempos são outros, há séries americanas excelentes, mas o flair nostálgico que suscita o modo de vida da nobreza inglesa de outrora continua a fascinar: ele é a paisagem, o labrador, os rituais familiares e sociais, os diálogos irónicos e subtis em vez de uma boa peixeirada à americana no gueto, a rígida distinção de classes e a invariável mistura delas, porque afinal somos todos humanos, embora em teoria saibamos bem qual o nosso lugar. No todo, Downton Abbey é uma boa série, mas não tão boa como Bridshead, por exemplo, com o seu universo desviante e a premissa de devassidão moral que se escondia nas boas maneiras à mesa. Isto tudo para dizer que, sendo intrinsecamente de boa qualidade, corre o risco de se tornar insuportável devido a factores externos, como o merchandising que se está a gerar à sua volta. Pelo menos para quem, como eu, gira no universo facebookiano. Ele são t-shirts, banda sonora no itunes, livro de crónicas, aplicações várias (uma, por exemplo, permite explorar o palacete, divisão a divisão), calendários, DVD´s, com imagens e frases dos personagens favoritos, análises psicológicas dos mesmos, escolha o seu, encomende já, iadaiada. Se falarmos, por exemplo, de Family Guy e do personagem Stewie (quem não sabe temos, sinceramente, pena), num dichote ou pose perversos, tudo bem, tem um piadão e queremos comprar a t-shirt (ou não): faz sentido, pelo contexto. Neste caso, não bate a bota com a perdigota. Há um enxerto de contemporaneidade consumista que retira à série parte da sua magia, que é fazer-nos acreditar que houve em tempos um mundo em que as pessoas eram de facto assim, viviam e falavam assim. Se nos querem impingir a Lady Violet (uma condessa uptight mas espertíssima) numa t-shirt e fazem pools para votarmos se o mordomo Bates é ou não o "culpado" (até há uma petição que se pode assinar para que seja libertado!), se colocam fotografias desfocadas para adivinharmos quem é, uma série de época que se quer levada a sério passa a um reality show a fingir, cujos produtores querem é sacar-nos dinheiro, aproveitando-se da nostalgia romântica em que nos deixamos levar a cada episódio. Quanto a mim, tem um efeito contrário: ao ser bombardeada com as supostas complexidades da personalidade de uma criada e com a cara de um lord pespegada numa caneca, entro na realidade que é o séc. XXI, perco o interesse, e a televisão deixa de servir o seu propósito de alienação e de viagem no tempo, durante a hora que dura cada episódio, para se tornar o mero veículo de um negócio bem esgalhado. Só falta mesmo um jogo para a playstation em que os personagens ganham pontos com o comentário mais espirituoso ou fleumático e se agridem, sei lá, com luvas de pelica ou guardanapos de linho.