dos amigos (ou dos não-amigos)
De um amigo exige-se duas coisas: que esteja lá quando é preciso, seja de que maneira for, e lealdade incondicional. Isto não significa que um amigo nos defenda sempre perante os outros, em especial quando estamos errados, porque um amigo, como ser humano que é, tem uma consciência que formiga.
Mas um desacordo entre amigos exige recato, pudor, afastamento dos outros, gritos em privado, zaragatas, silêncios que ficam com cada um dos amigos e reconciliações a dois. Porque os amigos não deixam de o ser. Só quando andaram a fingir que o eram e, por qualquer razão, se mostram subitamente como não-amigos.
Uma relação entre dois amigos tem regras, como qualquer outra relação humana que une pelo coração duas pessoas diferentes que devem entender o que as divide, integrando essa fractura na própria amizade, como um osso partido e regenerado. A primeira dessas regras é ouvir o amigo antes de todos os outros, para evitar juizos apressados e mal-entendidos.
Não se exige a um amigo de um amigo que também é nosso amigo que tome partido. Exige-se que se afaste de uma relação que lhe é exterior e que no máximo, aconselhe e concilie, para bem de ambos os amigos.
Acima de tudo, há a regra que obriga ao Amor, querer bem ao amigo e vice-versa. Se tudo discorrer tão simples assim, como o fluir de um rio, as outras regras nem precisam de ser enunciadas.
A invasão do virtual veio perturbar as regras do jogo dos amigos. Não existem amigos apenas virtuais, mesmo que a distância nos liberte do crivo do pudor e nos leve a confidenciar-lhes o que mais íntimo temos. Estão fisicamente longe, logo, achamos que não há mal fazê-lo, que não haverá qualquer intromissão na nossa vida real. Que estamos longe do escrutínio crítico de quem verdadeiramente nos conhece.
Só que nada cria laços como o toque, os beijos, os abraços, os olhos nos olhos, as dores sofridas a dois quando estamos em apuros. Se o suposto amigo não conhece na verdade o outro suposto amigo, os coraçõezinhos, os likes, os elogios, os blinks, as palavras de elevação moral, valem zero. Bites e bytes.
Os não-amigos virtuais, os que fingiram sê-lo (por interesse, engano, admiração, inveja, voyeurismo), são perigosos, tóxicos, porque, ao saberem demais sobre a nossa vida pessoal (por negligência, distracção, conveniência ou credulidade nossa), minam as amizades reais, são dalilas que cortam a força que une os amigos quando estes não estão a olhar.
Gosto de pensar nas amizades que foram cerceadas pela intriga alheia como um interregno, porque um amigo não deixa o ser, fica apenas ferido, magoado, a lamber as feridas até sararem e se sentir pronto à reconciliação, que mais não deve ser do que um retomar.
Eu continuo a gostar de amigos que me foram desleais. Na verdade o coração não se atém a regras, tem vida própria. E então entro em contradição: se é desleal, não é amigo. Pois não. mas eu continuo amiga do meu amigo. Pronta a acorrer-lhe se precisar. Ninguém disse que a amizade tinha de ser bilateral, embora só seja plenamente satisfatória se o for.
Esta perenidade do sentimento de amizade em relação ao amigo que não perdoa, que finge que não se interessa, faz de mim uma pessoa melhor embora me confira uma certa sensação de superioridade, confesso. Não sou eu quem fica a perder e, mais do que isso, estou em paz comigo mesma e com aquele de quem sou amiga. Já este não poderá dizer o mesmo.
Disclaimer: qualquer semelhança deste post com pessoas reais é pura coincidência.