Mete-se no carro, com destino definido, o errado, como sempre. Sem cds nem ipods para se sintonizar com o que lhe vai na alma, escolhe uma estação de rádio ao acaso. Mas só lhe calham canções de amor, de amor impossível, de amor fácil, não me deixe só, muda; angie i still love you baby, muda; somewhere beyond the sea, somewhere waiting for me... muda; esteve nisto meia hora, talvez fosse do balanço da lua, boy meets girl, it´s friday i´m in love, my heart will go on, muda; every breath you take, i don´t wanna close my eyes i don´t wanna fall asleap, un-break my heart, say you love me again. Muda. Descobre que se havia tornado cínica. Sem dar por nada. Assim, num repente. By by love. Fica-se pela TSF a ouvir um ministro atacar a oposição. Ou talvez fosse o contrário. E depois umas explicações sobre economia em que se esforçou por entender porque lhe iriam ao subsídio de natal. Finda a viagem, e nada do que os analistas de serviço haviam debitado lhe ficara na memória. Talvez se fosse de dia, a objectividade calorosa do sol opera milagres, vemos as coisas como elas são, lemo-las melhor: a sabedoria é luz. Pára na estação de serviço e fuma três cigarros seguidos. A TSF passa agora a sua música favorita de nina simone, a que condensa o amor em estado sólido, wild is the wind. Traga-a mais fundo do que aos cigarros, é a sua forma de se render. Mas ao menos perde para a nina simone, e não para um qualquer lionel ritchie ou uma celine dion. E poderia sempre alegar que não fora por causa do amor que se espalhava pelas teclas do piano, mas por ser uma versão que nunca ouvira, em que a própria tocava como se lhe doesse e que ela não era nenhuma autista musical, por favor. Pisca os olhos para que não lhe fuja uma lágrima traiçoeira, carrega no acelerador e segue para o seu destino errado, de onde sairá pior do que entrou, careca de o saber, mas sem ideia de porque insiste na viagem. À sua volta, as sombras adensam-se e deixa de ligar ao que lhe devolve a rádio. Cínica ou não, lembra-se de Pessoa, numa estranha inversão de papéis, Mas cada um cumpre o Destino, Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino, Pelo processo divino, Que faz existir a estrada. A angústia a acariciar-lhe o pescoço, o vento a querer despertá-la do torpor do erro, debalde. Acende um cigarro no carro, um perigo, o carro abana enquanto se distrai com o isqueiro, está quase a chegar, a velocidade devolve-lhe a cinza, que assenta no apoio de cabeça; atrapalha-se como de costume e resolve mandar o cigarro fora. Hora das notícias. Mortes, gente doida, políticos aldrabões, escândalos internacionais. Nada de novo. Pensa em voltar para trás na saída mais próxima, como sempre lhe acontece a dois terços do caminho. De nada vale, segue em frente como se telecomandada. No oceano pacífico (pensa ela, que ouviu entretanto o canto das baleias) jamie cullum armadilha-a, fatalmente, mortalmente, com all at sea. Like a warm drink it seeps into my soul Please just leave me right here on my own Later on you could spend some time with me If you want to All at sea. Tal como o príncipe da estória, ela rompe o caminho fadado. Não só é cínica, mas ainda lúcida o suficiente para saber que o que faz, fá-lo sem qualquer outro propósito que não o facto de ter de o fazer, instigada pelo destino, o desafio, a falta de lógica, a incongruência. Descarta outras hipóteses porque, lá está, é cínica. Desliga a rádio e embrulha-se no silêncio sem qualquer tipo de fé. Tem pressa de chegar, talvez para mais depressa se poder vir embora. Conclui que nunca o saberá, tudo depende sempre de tantas pequenas coisas. Mínimas, minúsculas, repetidas à exaustão, inúteis coisas. A encruzilhada sem saída é normalmente o fim do caminho, como naqueles filmes de terror em que os adolescentes são caçados um a um, sem fuga possível. E essa é a única coisa de que tem a certeza, quando alcança a via verde a desafiar com velocidade muito excessiva a estreiteza da passagem. Sem fuga possível.
Gosto de estendais, sempre gostei. São um dos meus motivos favoritos para fotografar. Sou uma amadora rasteira que nem sabe as características técnicas da máquina que está a usar, ficando-se pelo ISO, a abertura, o zoom, a cor ou o branco e preto, rodar o botãozinho para paisagem ou retrato e pouco mais. Depois, o www.picnik.com faz o resto. A versão grátis, muito limitada (claro que digo isto para me valorizar, é demasiado óbvio?). Já a paisagem não me diz muito e não tenho jeito para captar expressões, rostos, nunca transmitem o que eu via na altura, não sei porquê. ou melhor, sei: não tenho o dom nem a técnica. Mas tenho jeito para uma coisa: enquadramentos, quanto mais não seja porque passo horas a pensar neles. O que fica de fora, o que deve entrar, o alinhamento. Gosto de nuvens. E de pormenores de edifícios, especialmente os degradados, o azulejo partido, o lancil meio desfeito. E do mar - o mar é sempre diferente e nunca lhe consigo captar a essência, o que é um desafio. Na minha habilidade precária, prefiro infinitamente mais fotografias a cor do que a preto e branco. E não há nada tão colorido como um estendal, em especial num bairro social, pobre, onde cuecas gigantescas de misturam com soutiens para os quais nem deve ainda ter sido inventada uma copa, t shirts do benfica com meias desemparelhadas, toalhas de praia com golfinhos gigantes, panos de cozinha, camisas de noite de flanela florida a roçar o chão ou o andar de baixo, molas de plástico de todas as cores e as sombras das roupas a esvoaçarem pela caliça das paredes , numa exibição despudorada de intimidade.
Gosto do Jornal i desde o primeiro dia. Não é preciso ser licenciado em design para perceber a então inovação do grafismo, a boa ideia quanto ao tamanho das páginas que facilita a leitura enquanto se bebe a bica, as notícias curtas que muitas vezes tendem a fugir ao comum dos tablóides e os, alguns, excelentes artigos de opinião. É claro que, enquanto houve o suplemento "Nós, Portugueses", coordenado pelo Pedro Rolo Duarte, o Mestre (saravá, Pedro!), o jornal era mais interessante. Depois, ao fim de 50 números, foi substituído por um suplementozito menos giro, em termos de conteúdo - e em especial em termos gráficos -, mas que, mesmo assim, não desmerecia do jornal no seu todo e que manteve bons colunistas, que é o que interessa. É um jornal "jovem", sem a parte pejorativa geralmente associada ao que é ser "jovem". Não sei quem foi que o comprou, nem o que é que o senhor faz ou é. Parece-me, no entanto, que começar por deixar de pagar aos colunistas, a espinha dorsal de qualquer bom jornal que se preze (porque, para notícias em primeira mão temos sempre o twitter e o google) é, não só um erro estratégico, como uma enorme falta de respeito para com a dignidade criativa de quem escreve. Sempre achei que escreve de graça quem quer e quem pode - ou quem não consegue ser pago pelo que escreve (ou porque não é suficientemente bom ou porque a vida lhe é injusta). Por isso eu escrevo num blogue e, ocasionalmente, para quem me convida. Mas escrever regularmente para um jornal ou uma revista é trabalhar. A sério. Não é coisa de madraço, como muito invejosos e wannabes afirmam, mas é dar no duro, mesmo - em especial se se tem brio naquilo que se faz. Implica investigar, escolher bens as palavras, buscar inspiração mesmo quando não a há, dar tudo para ser original, encolher textos, alargar textos, submetermo-nos à ditadura dos caracteres e das imposições editoriais, entregar um artigo em modo deadline e mal ter tempo para respirar ante a pressão de saber sobre o que escrever no artigo que vem a seguir. É trabalho físico e de cabeça. E é o alimento de quem depois o lê. É por eles e elas (os que escrevem e opinam sobre o que se passa no mundo) que muita gente compra jornais. Eu, por exemplo, que não gosto do Público, compro-o só para ler o MEC, logo no dia, fresquinho, assim que sai. Uma coluna pequenina, uma pérola enfiada no meio de um jornal que nada me diz, mas eu compro-o. E, como eu, muito gente fará o mesmo em relação aos seus colunistas favoritos. Deixar de lhes pagar em nome de uma "reestruturação necessária" é um desrespeito, uma desonestidade e, principalmente, um tiro no pé: os colunistas do "i", da mesma forma que vão deixar de ser pagos, que deixem de escrever, e depois é ver quem pega no jornal e para onde vão os oito mil e quinhentos leitores diários.