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Como sempre, chego atrasada aos temas candentes e quando já toda a gente disse o que havia para dizer. Bom, adiante. Fui finalmente ver o filme sobre o Facebook (taylormade para os óscares, já agora) e saí da sala a detestar um bocadinho a coisa, a génese que esteve na base daquilo e a cretinice natural do fundador hoje bilionário. Já em casa e fui a correr ver a ficha técnica do FB, os terms of agreement e tudo o mais que nunca me havia ocorrido ler. Constatei por exemplo algo que já sabia: que não podemos apagar permanentemente a nossa conta, mesmo que o queiramos; que eles ficam lá com tudo: posts, fotografias, informação particular. Que temos que apagar as coisas uma a uma e que, mesmo assim, nada nos garante que o sejam com permanência. Imaginei-me com a trabalheira de ter de apagar individualmente as dezenas de fotografias que tenho por lá e todas as parvoíces que debitei ao longo dos últimos dois anos, todas as aplicações e jogos estúpidos que tive de bloquear, e apeteceu-me fazê-lo, mesmo. Mas, como sempre nestas coisas da NET quando desatamos a pensar em carregar no delete, aparece qualquer coisa de última hora que redime todas as intrusões de privacidade por parte de terceiros e todos os nossos excessos exibicionistas, e nos faz ficar por aqui ou por lá, a partilhar alegremente com o mundo coisas que, em bom rigor, deviam ser só nossas e dos que nos são próximos. No meu caso, foi a aplicação mais divertida que me apareceu à frente nos últimos anos: lyoncifica o teu nome. Toda a gente que tem FB sabe o que isto significa; os outros, se não andam a dormir, adivinham o que seja ou já viram/ouviram nos media. A Luciana Abreu (a ex-Floribela que tinha sexo com árvores) e o futebolista Djaló tiveram uma bebé, e devem estar muito chateados com o facto porque lhe puseram o nome de Lyonce Viiktórya. Não existe qualquer explicação humanamente possível para os is a dobrar, os kapas, os ipsilones... enfim, para os dois nomes na sua globalidade. Portugal estremeceu de pasmo e horror e, das Matildes de Massamá às Vanessas da Reboleira, passando pelas Eugénias Marias da Lapa às Marilúcias de Bragança, os queixos caíram. Pouco depois, alguém que deveria estar a trabalhar e a contribuir para o PIB deste nosso país (e que afinal até estava, mas na altura ainda não o sabia), teve uma ideia genial: criou uma página no FB cujo fundo são uns nenucos pretos e brancos, com umas caixas onde pomos o nosso nome e apelido, carregamos num botão e... maravilha das maravilhas!, lyoncificamos o nosso nome. Os resultados, apesar do pendor mais para o leste ortodoxo do que para a áfrica muçulmana, são hilariantes. A coisa começou no FB, com cerca de 300 mil partilhas e hoje quase um milhão de pessoas já usaram a aplicação - que pelos vistos foi feita por dois criativos de uma agência de publicidade. Neste momento, já tem o patrocínio de uma cerveja, (o que lhe retira um bocado a piada espontânea, convenhamos), uma página na net, apareceu na rádio comercial (fizeram até uma música a propósito), na SIC e na RTP, e o próprio casal-maravilha, confrontado com a situação, sorriu sem sinais de rancor, desejos de vingança ou qualquer vontade de arrepiar caminho. E, embora a lucy tenha dito que têm de estar cá para "a proteger", à criança (presume-se que das piadas ao nome e outros atentados terroristas), ficamos com a sensação de que se há alguém de quem a pobre precisa de ser protegida é do mau-gosto delirante dos pais, difundido à escala planetária. Conclusão: cada vez gosto mais do Facebook.
Esta noite (melhor, esta manhã, depois de uma insónia dolorosa), sonhei que tinha tido um bebé e que estava a dar-lhe de mamar, num festim abundante. O sentimento primário era de aflição pois, tal como na vida, estava divorciada e o pai (primeiro, o pai dos meus filhos, depois, e à medida que o sonho avançava, figuras masculinas indistintas que se sobrepunham para me exponenciar a aflição), queria partilhá-lo - uma coisa tipo guarda conjunta, já não sei bem. O pressuposto salomónico provocava-me um desespero danado e eu, no meu absurdo onírico, só pensava em como o pai o iria alimentar quando o tivesse, se eu lhe estava a dar de mamar. Acordei num choro interior convulsivo e gutural, sem lágrimas, afogada em soluços secos e fiquei a olhar para o tecto, a racionalizar e a pensar que não deveria ser alheio ao sonho o facto de ter tido uma amiga que teve um bebé há poucos dias e de, ao pegá-lo, ter revivido por todos os meus poros aquele cheiro que só os recém-nascidos têm. Isso, e a ideia de partilha, um conceito nobre que ultimamente me preenche a vida e que adquiriu, pela força das coisas, uma conotação pejorativa de corte, separação, ganância e metades desavindas. Tudo é muito bonito até deixar de o ser. Levantei-me, lavei a cara, deitei-me e adormeci de cansaço, voltando a pegar no sonho exactamente onde o havia deixado, o que muitas vezes me acontece. Imagens de maminhas leitosas, beijinhos e abraços possessivos, a par com sensações de medo e de perda, que ninguém me o tira que eu não deixo. Que bebé tão meu, aquele! Não sei se era menino ou menina nem como se chamava, sei que era meu, um prolongamento de mim: era eu. Levantei-me, fui à minha vida mas passei o dia a pensar nele e no cheiro vivo que dele emanara: uma mescla do cheiro de todos os bebés que já tivera nos braços, com o dos meus filhos depois do banho, misturado com o da eau de toilette Mustela, do lait da Tartine et Chocolat ou com o da velhinha Johnson´s Baby (o melhor). E o cheiro perseguiu-me: pelas ruas de Lisboa, no escritório, pelas lojas onde entrei. Hoje quis imperiosamente um bebé só meu. E, mais do que os últimos estertores do relógio biológico que adianta e atrasa no meu subconsciente, o que se passa é o custar-me vê-los crescer calcorreando o longo caminho que nos separa a mim e ao pai, andando por vezes para cá e para lá em terra de ninguém, sem serem verdadeiramente dele, nem meus.
As pessoas não mudam. Esqueçam: não mudam. Nem por amor, nem por dinheiro, nem mesmo por outra imaterialidade ou materialidade qualquer: não. Podem largar a pele, encarnar noutras, metamorfosearem-se, temporária, provisoriamente, só por um bocadinho, às vezes vidas inteiras, mas não mudam. A natureza está nelas a ferro e fogo, como se nascessem com a fé ou com a falta dela. Normalmente, é o amor que as demanda: o outro exige-lhes nada menos do que a perfeição; idealizarem-se parceiros durante meses e anos tem depois destas coisas: só queremos do bom e do melhor. Além de acharmos que a tanto temos direito, o que é totalmente verdade. Tornamo-nos tirânicos, comportamo-nos como novos-ricos com o nosso amor, fazemos-lhe exigências absurdas, assim tipo mandar o empregado do restaurante equilibrar a flute do champanhe na ponta do nariz. E depois, somos contraditórios, tal a nossa arrogância de amadores: queremos as coisas à nossa maneira, independentemente da vontade do outro, embora lhe perguntemos se está bem assim, numa aparência de democraticidade que comove. Só para que o outro, seguindo as regras do jogo senão lixa-se, diga que sim, que está muito bem. Mas também não pode ser um assentimento a roçar o submisso, o imediato submisso, que assim perdemos o respeito e o outro lixa-se à mesma. A coisa tem de ser de tal forma hábil que pareça que aquelas duas vontades se encontram por acaso no firmamento e puf!, delas saíu uma determinação comum inabalável. Já a oposição frontal e desafiadora pode ser fatal, daí que o não querer o mesmo que o outro quer tem que ser uma ideia largada devagar, como um lais de guia suavemente a desfazer-se enquanto o barco aquece o motor e se afasta no silêncio das águas escuras. Primeiro, lançar a dúvida razoável, antes de contra-argumentar; ver a hesitação fermentar no outro, apanhar o flanco desguardado e acrescentar mais um ou outro senão, fazendo-o sempre crer que a dúvida brotou expontaneamente da sua argúcia e raciocínio e não que lhe foi subtilmente incutida. Assim se vão mantendo os equílibrios do mundo, os do amor e os outros. Com base na mentira, no compromisso, no jeitinho, no carrega ali e empurra aqui, no aguenta além. Isto é assim porque as pessoas são todas diferentes umas das outras, logo querem coisas diferentes: para si e dos que as rodeiam. E não mudam. Mas como se querem e se precisam e se amam e ficam doidas se umas sem as outras, querem moldar-lhes os contornos às suas próprias curvas, brincar aos deuses, portanto. A harmonia, sobrevalorizada, é sempre uma elevação momentânea que prolongamos artificialmente em nome das harmonias posteriores, das mais-valias que contamos vir a obter. Existem apenas flashes de entendimento total, como se por segundos abarcássemos o outro todo. Mas noventa e nove por cento do tempo andamos aos papéis, a fazer força para que os outros nos agradem e os outros, que nos sintamos agradados, tentando não nos arrependermos da escolha que fizémos, a atrofiar os sonhos. Mas o mais extrordinário disto tudo é que, com toda a inteligência que nos foi dada mais o instinto de auto-preservação com que fomos dotados (esse de nos enfiarmos em conchas para não sofrer, de nos armarmos até aos dentes ao primeiro sinal do armagedão emocional, de chamarmos à colacção todas as más experiências de vida) voltamos sempre a cair no mesmo: uma e outra vez, a tentarmos mudar quem queremos que encaixe assim ou assado nas nossas vidas, empurrando-o até passar pelo buraco da agulha da nossa aprovação. Quando bastaria olharmo-nos e vermos em nós o maior exemplo de que não mudámos, nem por nada nem por ninguém. Apenas fingimos por uns tempos. É por isso que sacar um juramento com o fito de inibições futuras, ou seja, à base de condições de facere e de non facere, é o acto menos humano e mais violento que podemos impor ao outro.
* let´s call the all thing off (faz de conta que, no vídeo, Fred Astaire dança no gelo com Ginger Rogers. maravilha)
Sofia Vieira ©