a filosofar sobre as sopeiras ou o ipiranga das patroas
Disclaimer: este é um post fascizóide. Portanto, esquerdalhas defensoras do subsídio social, das férias negociadas, do seguro de saúde e do basicamente "aqui quem manda é a minha empregada", sigam.
Por razões que me ultrapassam, juro (tipo mortes e doenças improváveis), tenho tido várias empregadas domésticas nos últimos tempos. E, como mais do que duas já me chegam para teorizar, tenho chegado a várias conclusões, sendo a principal a seguinte: mesmo a mais angelical das moldavas, a mais fofinha das amas-de-leite angolana ou a mais honesta das mães de família portuguesa, é na verdade um demónio, todas uns penates invertidos que vieram ao mundo para foder o nosso caos natural de patroas, desajudando enquanto, alegadamente, "arrumam".
E quem esteve algum tempo sem as ter, percebe ainda melhor o que quero dizer: ao princípio é o pânico: ai!, ai!, ai!, e agora o que é que eu vou fazer?. Ele são as pilhas de roupa que se acumulam pelos cestos, os pêlos de gato em tufos pela casa, as camas por fazer quando chega a noite, a loiça que se acumula porque nem há tempo de a enfiar na máquina e de repente já é o dia seguinte. São as teias de aranha, o pó e as casquinhas que oxidam. Mas, aos poucos, lá nos vamos organizando, distribuindo algumas tarefas por terceiros (poucas, que as crianças continuam a achar que um grupo de duendes lhes arruma os quartos durante a noitem enquanto dormem). Aprendemos expressões populares e giras como "fazer máquinas de roupa", que partilhamos triunfantes com os que nos são próximos, que nos ouvem, horrorizados: "Olha, ontem fiz quatro, QUATRO!, máquinas de roupa!". Também é natural que, por alguns tempos, toda a roupa ganhe o mesmo tom acinzentado, dito de burro quando foge, porque nos é desconhecido aquela coisa básica de "não misturar cores diferentes": a bem dizer uma patroa não nasce ensinada. Entretanto, lá aparece uma empresa que nos carrega a dita roupa depois de lavada dali para fora e no-la entrega já passada; as camas vão sendo feitas à má-fila, o pó é esquecido e as pratas também e, desde que apareça comida na mesa, está tudo bem e a vida segue. Até que um dia concluímos que, por mais que nos esforcemos, a casa não tem maneira de se compôr, de brilhar, de ficar bonitinha como dantes. Apercebemo-nos disso quando damos por nós a desculparmo-nos perante as visitas e a enfiar boxers sujos para debaixo do armário com o pé. Enquanto isso, as plantas morrem de sede, não há quem dobre a roupa interior, a aranha no canto já gerou descendência e às tantas não sabemos se a casa é nossa, se dela e das filhinhas dela. Os recantos mais obscuros da cozinha acumulam porcaria - como os fundos da dispensa e das gavetas, onde nunca chegamos. Instala-se o pânico das baratas e de outros rastejantes, daqueles que sobem pelos canos. E começa mais uma vez o calvário das entrevistas ao sopeiral.
São sempre todas recomendadas por amigas e tias, do melhor não há, conhecidas da Svedlana, "que está há dez anos em nossa casa". Estranhamente, as entrevistadas querem logo saber das férias, dos subsídios, dos descontos para a segurança social e do horário de trabalho, e todas elas são limitações, embora nos exijam este mundo e o outro. Oito euros por hora ou setecentos euros de ordenado fixo, logo à cabeça. Nunca perguntam se há crianças em casa, que idades têm, como se chamam cagando e andando. Uma ficou logo ali quando lhe disse que, periodicamente, tinhamos um cão. Grande. E ela: "é que se ainda fosse pequeno... tenho horror a cães!". Portanto, a estatura do cão (dócil, estamos a falar de um labrador), impediu-a de aceitar o emprego. Talvez tivesse preferido um pincher daqueles que vão logo às canelas. Ou apenas não queria trabalhar (o mais provável). O que nos leva directamente para a próxima questão (e aqui entramos na tese propriamente dita):
a) as sopeiras são todas umas esquisitas. O que é bom para nós nunca é suficientemente bom para elas. Só comem pão assim e assado, ou integral, ou saloio, ou de sementes, ou alentejano ou o caralhinho, e nós de carcacinha com manteiga, todas contentes. A carne, só do lombo porque os dentes, ai os meus dentes são muito sensíveis e o senhor doutor disse-lhes que só podiam comer da tenrinha. Então mandamo-las ao talho comprar frango para fazer com esparguete, e elas vêm com o saquinho de bifinhos do lombo para jantarem em casa. E a fruta, só da melhor: mangazinha e papaia, das madurinhas, porque a minha Rute só gosta de fruta muito doce, e o ananáz tem de ser abacaxi que ela tem tendência a fazer aftas, diz-me uma enquanto eu rôo uma maçãzita (pronto, é bravo-esmolfe, é verdade, mas não chega aos pés de uma manga madurinha).
E os restos? Não conheço sopeira que coma restos de refeições anteriores. Já tive várias a quem dizia, expressamente: "oh dona xis, para o almoço tem aí o resto do empadão que fiz para o jantar, está guardado no frigorífico; também sobrou salada". Qual quê. Caso calhasse vir a casa à hora de almoço, lá estavam elas a alambazar-se com queijinhos frescos e tostinhas e ovinhos mexidos e manguinhas e o empadão à espera, para o comermos nós ao jantar. Também não bebem qualquer coisinha: água, só mineral ou purificada, que a da torneira pesa no estômago e sumos, só de laranja e naturais, porque os outros é só corantes e açucar. E isto porque:
b) todas as sopeiras estão sempre doentes. Não sei se já repararam, mas não existe uma empregada doméstica que venda saúde e que chegue energética e a fazer jogging para o trabalho. Têm sempre milhões de achaques: ou de coração, ou pernas inchadas, ou tendinites, ou são fracas de estomago (daí só poderem comer iguarias, e não empadões requentados), ou são as cruzes e não podem estar muito tempo em pé, ou têm tensão baixa ou tensão alta. Isto não seria dramático se as casas não tivessem esquinas e se a gente, patroas, não tívessemos de nos cruzar com elas de quando em vez. Porque quando somos apanhadas elas já não nos largam e estamos feitas. Normalmente, têm ou já tiveram todas as doenças catalogadas pela OMS - elas e as respectivas ninhadas; e, enquanto vão contando os meses que estiveram internadas e os procedimentos previsivelmente carérrimos a que estiveram sujeitas para ficarem boas, depois de cem tacs e duzentos exames acabados em ias, daqueles que a gente só ouve falar no house, cospem sem dó nem piedade no sistema nacional de saúde. Que um dia uma enfermeira passou por elas e nem lhes disse bom dia, que outro dia o médico nem olhou para elas no corredor, o ordinário. E depois vão sempre a muitas juntas médicas e estão sempre muito de baixa. Mas, para elas, é sempre "uma vergonha, senhora doutora! uma vergonha! ai o que eu sofri, que estava a ver que me ficava ali naquela cama de hospital!".
E não são só as doenças, ná. Quando coincidimos com elas numa qualquer divisão da casa (valha-nos deus!), temos de correr, correr muito!, senão somos fulminadas com a conversa sobre "qual o melhor detergente para mosaicos" ou "a minha filha teve notas muito boas na escola e ganhou uma bolsa de estudo" (e nós lixadas porque os nossos tiveram suficiente, as putas), ou ainda o clássico: "o meu irmão que está emigrado vive numa cidade alemã muito linda e lá têm regalias de saúde a sério, não é como cá" (esta versão é em especial para as sopeiras tugas da bata, de preferência as que já foram operadas três vezes ao coração sem pagarem um tusto e que ganham de vários lados sem nunca terem feito um único desconto).
Quando finalmente nos libertamos das suas garras queixosas, e elas vão trabalhar qualquer coisa, e aí é pior a emenda do que o soneto. porque:
c) as sopeiras querem sempre transformar os nossos apartamentos à imagem e semelhança das suas casinhas na pontinha ou em rio de mouro - e fazem-no quando nós não estamos a olhar. Por exemplo, a obsessão pelas molas de roupa: elas usam molas de roupa para tudo, não apenas para pendurar a roupa propriamente dita. Gostam do objecto, pronto. Fecham os saquinhos todos com aquilo "pra não entrar ar" e deixam-nas espalhadas pela cozinha, não vão ser precisas a qualquer momento. Depois lavam e guardam os boiões dos iogurtes, onde metem terra e algodão para nascerem sementinhas não sei de quê, porque têm a mania que são jardineiras. E de seguida vão-me para o terraço escavar ceninhas e trocar as plantas de vasos, e transplantar as ervinhas dos boiões para os vasos maiores, e cortam-me rosas para fazerm arranjos que metem em jarras no meio da sala. Além de prenderem cordas de roupa com nós impossíveis, com que me atravessam o terraço de lado a lado, e onde balançam meias e cuecas - que o estendal que lá pus, escondidinho atrás de umas treliças, nunca lhes chega. A minha presente empregada, por exemplo, fodeu-me o ambiente lounge: neste momento, tenho aquilo transformado numa mini-marquise da rinchoa, que até cactos tem (cactos!), o que só ontem descobri. Estou com uma fúria destrutiva digna de um transformer, um dos maus.
Mas elas ganham sempre: agora, por exemplo, vou comer o resto das almôndegas de ontem e fazer as camas de lavado, que a gaja não vem há dois dias, parece que está com uma merda de varizes, e já me telefonou a contar que o doutor lá do centro de saúde não sei quê, agora só para a semana, senhora dout..., mas entretanto fiquei sem bateria e parti-lhe a merda dos boiõezinhos todos.