papel de embrulho
No novo anúncio da Elancyl, que promove um creme de emagrecimento, aparece a imagem de um corpo de mulher magérrimo, com os ossos secos de carnes, pontiagudos, a espinha a sair das costas. Um corpo que só pode ser fruto da cirurgia plástica ou do photoshop, não por ser absurdamente magro, mas porque todo o músculo e toda a gordura se acumulam no rabo, em dois semi-círculos perfeitos, redondos, simétricos, lisos. São duas saliências desproporcionadas, que lembram comida, bebida, apalpões, coisas boas e suculentas. Em total desacordo com o resto, portanto, que é escanzelado, famélico, tristonho, quase impossível de agarrar. Não percebo, juro. A harmonia não é isto, desculpem lá; a harmonia pode revelar-se na aparente falta dela; o equilíbrio nem sempre se consegue com os dois lados iguais, como qualquer arquitecto ou designer melhor explicarão; e a beleza pode encontrar-se no desnível, na falha, na brecha: uns joelhos ligeiramente tortos, uns dentes encavalitados, uma cintura estreita que se espraia num rabo grande, uma mama mais pequena do que a outra, manchas, sinais, mapas, avisos, defeitos. Pormenores que nos tornam únicos, diferentes, ideias a desenvolver, apostas, projectos, curiosidades, obsessões. É claro que não me apetece entornar celulite só para me distanciar da boazona rija que se cruza comigo na rua, mas gosto de algumas coisas em mim que são tortas, imperfeitas, excessivas. De outras, claro, não tanto, e faço por combatê-las, o que me parece saudável. É que, apesar da ditadura social e mediática de que todas as mulheres comuns se queixam, não acho que os actuais ideais de beleza sejam uma chatice para aquelas que se interessam por homens inteligentes; afinal, só os homens estúpidos gostam de exibir, a título permanente, troféus de caça escanzelados a rebentar pelas costuras no rabo e nas mamas. Os outros, gostam dos sinais, das sardas, das assimetrias; e não desamam por uns quilos a mais ou por qualquer membro subitamente descaído . Uma cara e um corpo só bonitos e só (aparentemente) perfeitos provocam, em quem deles usufrui, um entusiasmo e um prazer que duram o tempo exacto que demora a desembrulhar um presente lindo, apenas para depois se descobrir que não há nada dentro da caixa. O que não significa que não me irrite um bocadinho, o quererem fazer-me passar por parvinha tonta ao criarem em mim a necessidade - momentânea, é certo, mas nem por isso menos real -, de ter aquele corpo irreal, que tresanda a retoque, a vazio e a papel de embrulho.