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Primeiro, chegam-me os cheiros: o da lenha no ar a aconchegar as alvoradas, o da alfazema roxa junto à porta, o da relva fresca acabada de cortar e o dos oregãos, que salpicam aos molhos o terreno do lado. E o cheiro dos meus próprios cozinhados, a janela um tudo nada aberta a travar o atrevimento dos gatos, e o aroma do refogado a fugir para o exterior e a perturbar os cães, que farejam sem descanso uma possibilidade de entrada. Depois vem o resto: os miúdos a rebolarem no jardim com o cão à rabia, de bola presa na boca babada, as hortênsias que namoram o musgo agarrado aos muros de pedra molhados, as citronelas acesas no alpendre, os amigos acampados na antiga vinha, o som da guitarra de alguém, os mergulhos na água fresca, a hera que cobre o azulejo antigo, o santo de gesso esboroado que nos benze à passagem para a casa-de- banho, o quadro cubano no pano da lareira - uma lareira a sério, com capitéis em pedra, e o ninho de corujas que todos os anos entope a saída do fumo, coitadinhas das crias, houve um inverno que nem lume fizemos nem nada. Mas, principalmente, os miúdos, felizes; felizes, os miúdos, o sol a lambê-los com alegria, é Verão (por ali é sempre Verão). Então ele pergunta-me, com um sorriso virginal, se não quero voltar, se não quero tudo aquilo outra vez, e eu sim, claro que quero, os nossos alperces são tão doces, e os pares de melros que nos orquestram as manhãs de domingo enquanto nós na cama, a espreguiçar o tempo. Sejamos exactos: eu na cama e ele noutro lado qualquer, talvez noutra cama, no sofá; ou então eu no sofá: afinal, este sonho é uma reprodução exacta daquilo que foi e é por isso que lhe digo que sim, porque tenho saudades do que tive. Aceito, sim, quero, e entro de chofre na minha vida antiga, a pensar como te hei-de dizer que te troquei por uma promessa de relva fresca; preocupada, com medo de que fiques doente, que me morras, sei lá. É aqui que tu entras, portanto. Não exactamente a tua pessoa, ou a imagem da tua pessoa, mas antes uma intuição de ti, um sentir-te por cima de todos os cheiros. De repente, não sei porquê, acordo, e dou contigo ao meu lado. Enrosco-me um bocadinho mais no teu calor e sorrio no escuro, que bom ser Inverno e estar tanto frio lá fora.