perdas, ganhos, o natal e a verdade
Durante anos enfiada no meu mundinho de privilégios a brincar às casinhas, nunca percebi muito bem porque é que certas pessoas detestam o Natal. Vejo agora, depois da perda que sofri este ano (mesmo que uma perda auto-infligida e deliberada que trouxe consigo o perfume de ganhos futuros), que faz sentido não se gostar do Natal, querer passar por ele como num sono e acordar já no ano novo, onde nos restam onze meses pela frente até querermos dormir outra vez. Onze não, dez, que agora o Natal começa em Outubro, como se vê pelas montras, fodido isto. Quando a gente se impõe uma perda, tudo na vida muda de repente. A diferença em relação às outras perdas, àquelas que nos são impostas, é que quando somos nós que as queremos, ao princípio tudo são ganhos, vantagens, benesses futuras. Como se, por mudarmos, mudássemos imediatamente para melhor. Perdemos uma vida mas ganhamos logo outra; abdicamos do nosso lugar numa hierarquia familiar estruturada segundo regras de anos e fazemo-nos à vida lá fora. De repente, uma perda é parecida com estarmos de férias, tudo é fresco, tudo é novo, a liberdade é quase eufórica, o mundo espera-nos e acolhe-nos. Mas, passados alguns meses sem que nada de extraordinário aconteça, as férias começam a prolongar-se para além do desejável. E a gente sente um apelo desgraçado pela rotina que perdemos, pelo rame rame de que fugimos, e começamos a ter saudades das pessoas e de tudo o que um dia, resolvemos - depois de muito pensarmos e sopesarmos - deixar para trás. É como se, depois de algum tempo a olharmos em frente e só em frente, começássemos como quem não quer a coisa a espreitar à socapa por cima do ombro. Será que fiz bem? São perigosos, estes estádios intermédios, de limbo, tenho perfeita noção disso. O canto da sereia que é o regresso ao status quo é muito poderoso e alimenta-se das incertezas e das pequenas desilusões. Felizmente, a minha memória longínqua é bem mais eficaz do que a imediata, que já nem me lembro do que almocei hoje. Mas lembro-me bem, dos rios de insatisfação que corriam fundo por debaixo dos presépios gigantes, das árvores e das decorações imaculadas, das fogueiras de Natal e das missas do galo. Lembro-me, principalmente, das palavras que, nos últimos anos, ficavam sempre por dizer. Por isso sei que, apesar das alegrias que tive e que foram muitas, não quereria voltar àqueles natais tão perfeitos. Se calhar, este ano os enfeites serão diminutos, haverá poucas estrelas, azevinhos e singalongs; e se calhar, o rat pack e o king´s college choir nem chegarão a este blogue: a perda que me impus (e que se estendeu a todos aqueles de que mais gosto, o que é a parte fodida) torná-los-ia insuportáveis. E a liberdade, mesmo que agora me pareça sobrevalorizada, trouxe-me ao menos uma coisa de que já não abdico: a verdade. Só entende isto quem já perdeu pessoas, momentos, partes importantes da sua vida. No fundo, o que eu queria dizer é uma coisa que nunca ninguém pensou em ouvir-me dizer: christmas sucks e temos pena.