A inveja, o patinho feio dos pecados capitais
A inveja é a desgraçadinha-mor de todos os defeitos, quase pior do que possuir-se impulsos homicidas ou sexuais impróprios. Nunca ninguém admite que é invejoso. Se repararem, naqueles questionários aos famosos, quando lhes perguntam qual é o seu maior defeito, nunca ninguém diz sou um grande cretino ou um grande invejoso, não. No máximo, sou muito teimoso/a, e quanto a defeitos estamos conversados. Já o contrário é mais comum, toda a gente se apressa sempre a esclarecer que não é nada, mas mesmo nada, invejosa, e que só quer o bem-estar e o progresso do seu semelhante. Ora, todos sabemos que isto é uma grande mentira porque todos somos, em maior ou menor medida, invejosos. Eu, por exemplo, invejo basicamente uma coisa: os que viajam. Se a minha melhor amiga me disser que vai durante um mês fazer uma viagem de descoberta espiritual ao Tibete, eu respondo-lhe, com um sorriso amarelo, Ai sim?, que bom para ti!, mas lá no fundo desejo-lhe que no dia da partida haja uma greve total dos controladores aéreos. Total e permanente, já agora. Isto de ter os pés pregados quase 365 dias por ano ao solo pátrio é uma cruz demasiado pesada para se carregar, pelo menos para mim. É claro que depois passa e acabo por me despedir dela cheia de bons sentimentos (ou pelo menos, de sentimentos médios, vá lá). O problema da inveja é que é um pecado capital prolixo em nuancezinhas; não é por exemplo, como a gula. Neste caso, a gente quer comer para além da conta porque somos alarves, ponto (por acaso, também sofro deste defeito, mas isso é outra história). Ou como quem diz que sofre de luxúria: no mínimo, ainda se torna mais atraente aos nossos olhos e faz-nos querer ficar com o seu número de telemóvel. Na inveja, a sua qualidade, intenção e força estão directamente relacionadas com a posição social e com o nível cultural do invejoso. Uma funcionária pública de segunda categoria, por exemplo, que ganha pouco mais do que o salário mínimo e vive num T2 na Rinchoa, pode invejar de morte as botas Fly (colecção Outono-Inverno) da sua "chefe"; já esta, uma solitária divorciada, pode invejar o rame rame familiar infernal da sua funcionária, em especial aquele marido que, apesar da barriguinha proeminente, parece fazer-lhe todas as vontades e a trata por querida. Um historiador pode invejar um livro raríssimo e antigo, escrito numa língua morta que não interessa a 99% da população, que um mecenas novo-rico adquiriu num leilão; um condutor da carris, o colega reformado que vive numa quintarola no campo embrenhada no silêncio, uma candidata a famosa, as mamas novas de uma outra candidata a famosa, e os seus repentinos quilos a menos; uma mulher sem filhos, os afectos vibrantes da mulher com um bebé sentada ao seu lado num banco de jardim; uma mãe assoberbada, o silêncio e a paz que rodeiam a mulher solteira que lê um best seller sentada na relva. A questão é: até que ponto invejamos o outro? ao ponto de querermos para nós aquilo que ele tem e de sermos capazes de o prejudicar por isso? Ou a inveja da maior parte das pessoas não passa de uma inveja de deixa andar, uma inveja de encolher os ombros e siga a vida? Assim é (sim: sou optimista e boazinha como a Floribela). Felizmente, a maior parte das vezes que invejamos alguém, fazemo-lo a prazo, só durante um bocadinho é que quereríamos aquilo que a outra pessoa tem; na verdade, não trocaríamos de lugar com ela nem lhe roubaríamos o que cobiçamos com a alma subitamente faiscante de raiva. Eu, mesmo podendo, nunca iria um mês para o Tibete porque não aguentaria estar tanto tempo separada dos meus filhos. Só se não tivesse filhos, e isso deixar-me-ia seguramente mais infeliz do que nunca ter saído do bairro onde nasci em 41 anos de vida. A influência da inveja na nossa vida é tão menor quanto maior for a nossa satisfação com aquilo que, efectivamente, temos - e que não precisamos de cobiçar. Em contrapartida, é um sentimento tanto maior e corrosivo quanto mais as nossas vidas forem amargas e rançosas. Agora, que invejar faz parte da natureza humana, não me lixem que faz. Ao contrário dos outros animais (ditos irracionais), o conhecimento que temos do passado, do presente e a possibilidade de prognose do futuro, contribuem para que nunca estejamos satisfeitos e almejemos sempre a mais, sendo que o mais muitas vezes está na posse do vizinho do lado, o que é uma chatice, convenhamos. Normalmente passa. Mas motiva-nos para, por nós, conseguirmos ter o mesmo, ou ainda mais e melhor do que o mais do vizinho. Enquanto motor para a realização pessoal do invejoso, a inveja inconsequente e momentânea para com o invejado até pode ser uma coisa boa. Dito isto, vou agora ali matar a minha vizinha e roubar-lhe o Mercedes 190 SL de 1960 que acabou de guardar na garagem, a puta. E, de caminho, mato também todos os bloggers que escrevem melhor do que eu e que já publicaram livros. No mínimo, rogo-lhes uma pragazinha egípcia, pronto.