camiões do lixo e máscaras de pepino
E ela esperou. Obrigou toda a casa a um silêncio de monges, ordenando aqui e ali às paredes que nem se atrevessem, ao soalho que não rangesse, apertado com o calor pegajoso que cobria toda a cidade. Carregou a bateria do telemóvel no máximo, garantiu que o telefone de casa se mantinha seguro no descanso e fechou as janelas para que os barulhos da rua não lhe desafinassem o tom da espera. Tapou com um pano opaco a gaiola dos pássaros, para fingir que era noite e não cantassem, correu ao rés-do-chão e tocou a sua própria campainha, aferindo do bom estado da mesma, esticando o ouvido para o terceiro andar onde vivia. Desligou a música e, pelo sim pelo não, combinou a lingerie, duas peças da mesma cor, normalmente não ligaria nenhuma. Deixou a casa numa penumbra expectante e sentou-se no sofá muito quieta, o coração um músculo aflito, de acordo com a solenidade em pulgas do momento, em frente à televisão apagada e ao lado do computador, o telemóvel estrategicamente colocado para uma melhor captação, à espera que ele desse sinal. Ambos sabiam que esta vez não seria como as outras. Daí a importância extrema do pormenor daquele ritual de silêncio absoluto, não fosse ele escapar-lhe por entre ruídos mindinhos, enquanto ela distraída, sabe-se lá. As horas foram passando e a noite começou a crescer-lhe em cima, minando-a de ansiedade e de coisas más e irreversíveis, que trepavam por ela como bichos escamosos de sangue frio. A cada hora a mais, dizia-se que ainda era cedo, mas a noite a pesar-lhe como chumbo, o silêncio antes induzido agora a tornar-se-lhe insuportável. Ligou a aparelhagem baixinho, ainda assim poderia ouvi-lo se tocasse, se ligasse, se aparecesse. Uma cantora de jazz, com um timbre algures entre o infantil e o jocoso, experimentava uma nova versão de dance me to the end of love, o ideal para um final ensaiado e cronometrado ao minuto e ao milímetro, como o dela. Depois de desatar a chorar estupidamente, com uma raiva sanguinária que até a si própria surpreendeu, foi ao armário da casa-de-banho, aplicou uma máscara de pepino sobre as olheiras disformes, abriu as janelas de par em par, deixou entrar o barulho do camião do lixo e dos grupos de adolescentes que riam alarvemente encostados às colunas sujas dos prédios lá em baixo, ligou a televisão e elevou a voz dos candidatos que se enfrentavam em mais um espúrio debate eleitoral, baixou o tampo do pecê com desnecessária força e pôs o telemóvel no silêncio. Apercebera-se de que ficara aquele tempo todo, não à espera dele (ele não existia) mas à espera de notícias sobre uma história que nunca lhe dissera respeito.