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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

strawberry cheesecake

por Vieira do Mar, em 30.08.09

Resolvera voltar para o marido. Não aguentara a solidão, as recriminações familiares, o dedo de Deus a apontar para ela. Estava farta, dos longos interregnos em que deixava de ouvir os risos e as brigas das crianças, das mudas constantes de roupa, das refeições que saltava porque não tinha quem a acompanhasse. Sabia que, tal como havia sido ela a criar a situação, o nó górdio, facilmente o desfaria, bastariam um telefonema, uma conversa, um arrependimento sincero  e uma demonstração de fé no futuro. Não aguentara, não saber o que a esperava no dia seguinte, nem as longas conversas com o advogado sobre a impossível divisão dos bens, mas, mais do que tudo, achava insuportáveis e dolorosas, as secas e frias trocas de palavras que agora exercitava com o marido, aquele que fora o seu homem de sempre.  Odiava a sensação de estar sozinha, como se fosse uma faca de gume afiado e comprido que todas as noites se enterrava mais e mais no seu cérebro, fazendo-a sentir uma série de  coisas desagradáveis, que iam desde o pânico à mais pura orfandade. O pior era quando o silêncio era tal que ela tinha de se confrontar obrigatoriamente consigo própria e com todos os seus medos. Aqueles momentos do dia em que os miúdos não estavam, o trabalho acabara e o telefone não tocava. O que é que eu vou fazer ? Perguntava-se. Se morresse aqui e agora, ninguém daria por nada, e daqui a uns dias encontrar-me-iam a apodrecer, provavelmente os miúdos, quando voltassem para casa. Pensava frequentemente que qualquer coisa era melhor do que aquilo, apetecera-lhe vezes sem conta rebobinar a vida e voltar atrás, ao momento antes de ter tomado uma decisão tão definitiva e de ter mudado a vida de tanta gente tão de repente, do pé para a mão. Sentia-se uma caprichosa, uma odiosa caprichosa,  que descosera os bordos da família, já meia esfiapada das discussões, das mentiras e dos silêncios. A culpa soterrava-a em casa, em frente à televisão ou agarrada a um livro. Às vezes tinha pena de não fumar, de não beber, de não se drogar ou de fazer qualquer tipo de medicação que a atordoasse num estado de semi-imbecilidade, tal era a vontade de se alhear, de se entorpecer, de fazer o tempo andar mais depressa sem que ela desse por isso. Não tinha querido nada daquilo, pensara que tudo fosse ser muito mais fácil. A civilidade aparente da separação escondia um ressabiamento mútuo que latejava por entre os cumprimentos educados e a aritmética correcta quanto aos dias para cada um com os miúdos. Tudo muito pela rama e à superfície, para não despertar fantasmas adormecidos, mas que parecia resultar, por ora. De vez em quando, assaltavam-na uma espécie de saudades, não sabia bem de quê mas desconfiava, que ela  não deixava que se desenvolvessem, atabafando-as de imediato numa qualquer lembrança cheia de rancor que lhe era, decididamente, muito menos dolorosa do que aquelas vontades súbitas de um corpo e as lembranças de um cheiro familiar, um cheiro de toda a vida. Resolvera voltar para o marido, fizera as malas e preparava-se para ir ter com ele e com os miúdos, estava decidido. Mas antes, fez um exercício mental; um exercício que se impusera a si própria desde que tomara a dramática decisão de que agora aparentemente se arrependia. Pensa, Rita, pensa, dizia para si própria, Pensa em quando estavas com ele, mergulha dentro de ti nesses momentos, lembras-te? Pensa no tédio, na indiferença, na vontade de não estares ali, nas camas separadas, na tristeza miudinha de te saberes a dormir com um estranhoMas pensa, acima de tudo, na  vida  que existe  para além de tudo isso, e que só poderás eventualmente descobrir se agora passares por isto. Desfez as malas, foi ao frigorífico, abriu um copo  dos grandes de strawberry cheesecake, atirou-se para cima do sofá a ver um documentário sobre pinguins e pensou, logo à noite vou ao cinema.

"eu sou um cobarde..."

por Vieira do Mar, em 30.08.09

Ela pousou o livro na cama, o segundo da trilogia millenium, para ler um email que acabara de receber no telemóvel. Leu-o atravessado e à pressa, pois estava na parte em que se descobre quem assassinou o Dag e Mia; era uma declaração sincera e amigável, mas cobarde - não pelo que dizia mas por ter sido enviada por aquele meio, impessoal e distante, sem possibilidade de resposta imediata, de reacção adequada, de uma eventual explosão emocional (bastante razoável dadas as circunstâncias, aliás). Daquela forma, tinha seguramente custado menos a quem o escrevera: não havia confronto possível, nenhuma explicação adicional a dar, nenhuma hipótese de contraditório. Qualquer resposta que ela lhe desse, ficaria perdida por milhões de bites e bytes, e seria sempre um golpe em diferido, mole, sem a eficácia imediata e demolidora que pedem as declarações sinceras e amigáveis  como a que acabara de ler. Apeteceu-lhe gravar no peito dele uma frase que o identificasse como pérfido e perigoso perante todas as mulheres que se lhe seguissem, à semelhança do que Lisbeth Salander fizera no torso do seu tutor, talvez qualquer coisa como "eu sou um cobarde que gosta de brincar com os sentimentos das mulheres", atravessado na diagonal. Felizmente que ela tinha ligado todos os sistemas de protecção, todas as firewalls internas, alertada por mais do que uma contradição, por uma mentira aqui e ali, por estranhos recuos após insinuações de ataque, por gente de fora que lhe tinha dito que não confiasse. Tinha o coração bem protegido, todo ele acolchoado, nem um bocadinho de fora para amostra, nada onde lhe pudessem tocar. É óbvio que se abriu, e confiou e deu, mas porque lhe ensinaram que a reciprocidade pode ser um valor moral a preservar em certas circunstâncias, e que quando se recebe, tem de se dar qualquer coisa em troca. E, apesar de tudo, ela recebera algo. Recebera, por exemplo, uma espécie de amor aleijado; um amor intermitente que só lhe chegava a espaços, mas sempre de forma violenta, como se uma espécie de ultimato. Era algo que a assustava e a retraía, que a fazia esconder-se por detrás do riso e de uma falsa segurança, que exibia perante ele como uma parede de tijolo. Mas depois arrependia-se, pois ele, em todo o seu desnorte, acabava por ser-lhe sincero, devoto, quase fiel. E então, um dia, ela disse-lhe tudo; despejou literalmente a sua vida na cabeça dele, e ele que fizesse o que quisesse. A partir desse momento, julgou ela,  passara a haver um laço indissolúvel que os unia, a partilha dos segredos, das inseguranças,  dos medos. Agora, ao olhar para aquele email, definitivo e manso,  dava graças por ter mantido o coração abotoadinho durante todo o processo, caso contrário estaria a sofrer que nem um cão vadio. O que não invalidava a crueldade objectiva da situação por ele criada e alimentada, como se alimenta um animal selvagem em cativeiro. "Eu sou um cobarde..." pensava ela ao rasgar-lhe a frase no peito, uma e outra vez. E, como Lisbeth Salander seguramente faria, virou-lhe as costas, saiu e bateu com a porta sem sequer olhar para trás.

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