o Francisco decididamente nunca será velhinho
Este post está muito, muito, muito bom.
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A lembrança dos risos deles vai de encontro às paredes do quarto, tropeça num eco imaginário e rasa os ténis sujos que deixaram espalhados no soalho, riscado de tanto nele arrastarem coisas inúteis, enquanto a mão invisível da saudade me aperta o peito e me impede de respirar. Para evitar ensurdecer com o silêncio, ou pura e simplesmente morrer, vou à sala, ponho a música alta e cantarolo pela casa como se não fosse nada, mas agora eles já estão em todo o lado: no frasco dos chocapics há dias por esvaziar, nas fatias de limiano por encetar, nos danoninhos fora de prazo, nas toalhas empilhadas no banco da casa-de-banho, e não encharcadas em cima das camas, nos champôs com as tampas postas, no rebordo do lavatório sem bocados de pasta de dentes, no tapete do corredor direito ao milímetro, em vez de enrodilhado a um canto depois de um slide, nos comandos arrumados lado a lado e que costumam estar perdidos nos interstícios do sofá, na mesa da sala livre de migalhas, dedadas de chocolate e solas de sapatos, no pacote de leite guardado no frigorífico e não a azedar cá fora, no quarto arejado que cheira à rua lá em baixo, em vez de a suor e a pés como depois de um dia de corridas felizes. Os quadros estão perfeitamente alinhados com a superfície dos móveis e os arcos das portas; ultimamente, ninguém passou por eles a correr de braços abertos como se voasse. No quarto dela, o gato dorme em cima da colcha, esticada e sem um vinco, como se nunca uma adolescente ali se tivesse contorcido e revirado em gargalhadas soltas e insanes, horas e horas ao telemóvel, os pés parede acima, a cabeça virada para baixo, a cabeleira dourada a lamber a carpete rosa, o mundo é meu e dos meus amigos e o resto que se lixe. O skate, debaixo da cama, e não atravessado perigosamente no meu caminho, os microfones do singstar, enrolados nos próprios fios e arrumados ao lado da playstation, que por sua vez está recolhida atrás da televisão, penso até que já com um ligeiro lastro de pó. Olho em volta, conto os dias que faltam, ajeito-lhes as almofadas e vou ficando por ali, a guitarra do mais velho muda e queda a olhar para mim, mas mesmo assim a fazer barulho, muito mais barulho do que a música que vem da sala. É uma tristeza em esquadria, a minha, aprumadinha, milimétrica e lavada de fresco.