gavetas
por Vieira do Mar, em 14.07.09
A gente acha que tem tudo bem resolvido, arrumado nas gavetas certas, ordenado por cores, afectos e números. A gente pensa que tem tudo sob controlo, que carrega num determinado botão mental e desliga, que carrega num outro mais ao lado e adormece, que se chegar ao botão da ponta, esquece. A gente ensaia malabarismos vários, faz do coração um contorcionista chinês, anestesia o corpo ao cheiro alheio, enevoa o olhar e evita que este poise e se concentre, recita mantras enquanto desvia, dispersa e se distrai da familiaridade invasiva dos pormenores, das pequenas coisas, dos gestos e tiques que um dia tanto quisemos. A gente transmuta os sentimentos, como os vírus que se adaptam em novas estirpes, a paixão reduz-se a fascínio, a tesão a amizade, a amizade a indiferença, a indiferença a incómodo, o incómodo a ódio, tantas são as viagens possíveis, de cá para lá e de lá para cá. E, no entanto, temos tantas certezas sobre aquilo que no momento sentimos ou deixámos de sentir que seríamos capazes de tatuá-lo na pele para sempre. Mas de repente qualquer coisa vem. Uma tempestade súbita e brutal que se abate sobre a nossa cabeça, uma palavra, um som, uma imagem: algo que não devia estar ali, que não faz parte do filme, um anacronismo emocional de uma violência inusitada que nos pega à sorrelfa e que nos quebra como se, por dentro, fossemos feitos apenas de pequenos galhos de árvore caídos no chão, daqueles já mortos e espezinháveis. Felizmente, assim que aquilo que nos fez misturar tudo outra vez pelas gavetas todas, como se fossemos penates enlouquecidos, é subtraído aos nossos sentidos, as certezas são-nos imediatamente devolvidas. O caos dá de novo lugar à ordem e ninguém mais sequer pensa na ínfima cicatriz que se nos formou entretanto sob a pele.