sugus de menta
Cortada ao meio, eu; dividida entre escrever para exorcizar o rasgão que trago na carne e o silêncio, que é sempre mais avisado, mas desvirtua a brutal importância que têm as coisas num dado momento. Divida entre derramar o que sinto sem que ninguém perceba do que falo e ficar quieta no meu canto à espera que passe, como a trovoada de anteontem, lembras-te?, mas muito mais forte, porque há qualquer coisa que me ribomba por dentro, não apenas lá fora, e o que me interessa a mim a meteorologia. Na verdade também não ficar à espera que passe, porque quando saíste e eu corri atrás ainda chovia, e bem. Coisas que nos mudam para sempre; a gente não quer e ignora-as, finge que nunca existiram, mas mudam, e às vezes começa logo no dia seguinte, que já cheira a diferente, outras cores, outra percepção. E eu não o confesso nem para mim mesma, mas tenho um medo danado daquelas assombrações que se nos colam à pele porque houve um dia, porque houve um minuto distante à brava, próximo apenas da irrealidade mais absurda, em que dei por mim a espreitar por um caleidoscópio de possibilidades felizes, de vidros coloridos com formas muito bonitas e simétricas que faziam todo o sentido e onde tudo encaixava. Um sugu de menta, é isso: apetecia-me que me trouxesses à porta um pacote de sugus de menta, daqueles verdes, acho que agora se vendem outra vez; eu mastigava-os uns atrás dos outros como quando era miúda, uma data de papeizinhos embrulhados no bolso a esconder o pecado da gula. Voltava à infância a sorrir aliviada e depois fazíamos amor toda a noite passeando as mãos pela cara do outro, a desenharmo-nos cartas marítimas e a traçar azimutes, tantos anos a menos em cima de cada um de nós, nem um cabelo branco para amostra e os fantasmas do mundo dos adultos por fim adormecidos. Seria bom.