de repente não mais que de repente *
Foi então que ela percebeu. Estavam sentados na esplanada, numa tarde que prometia mais Verão do que aquele que de facto dava, a gozarem os minutos surripiados a outra coisa qualquer e a fazerem conversa fácil. Nada na coreografia banal com que acompanhavam as palavras fazia adivinhar a intimidade que os burilava por dentro e muito menos o assanhado dos gestos de horas antes. A incongruência corria-lhes fundo, por baixo de camadas de superfície. Enquanto ele falava, ela notou o cheiro do jasmim que tropeçava e caía pelo ar em socalcos adocicados, enquanto as suas hastes de flores pequenas e brancas se contorciam num caramanchão próximo. Interessava-lhe medianamente o que ele fazia, e sabia o suficiente de homens para perceber que estes precisam que as mulheres os valorizem, por vezes mais do que gostem deles, por isso ouvia-o com alguma atenção. Embora guardasse dentro dos olhos um carinho que resolvera travestir de ironia, por causa das coisas. Ele achava que o que fazia o tornava mais interessante aos olhos dos outros, logo, aos olhos dela, sem perceber que ela o escutaria da mesma forma se ele um trolha que estivesse a educá-la na consistência ideal do cimento-cola ou nas vantagens do tijolo de quinze. Estava a aprender, gostava de quem a estava a ensinar, e isso bastava-lhe. De repente, algures pelo meio do entusiasmo por si mesmo, voou-lhe um perdigoto que lhe assentou mesmo no meio do lábio inferior. Continuou a falar sem reparar no pormenor, que é um tipo de pormenor um bocadinho nojento, como quando ficamos com restos de espinafre entre os dentes e nos rimos para os restantes comensais, que nos olham entre o embaraço, a vontade de nos avisar e a náusea. Ela fixou-se naquele pontinho de cuspo branco, que brilhava translúcido por obra e graça da obliquidade precoce do sol da tarde, e pensou, embora sem realmente pensar em nada, lambia-te isso, agora. E foi aqui, neste exacto momento, no momento que precedeu aquele em que a língua dele varou os lábios e fez desaparecer o perdigoto solitário, que percebeu que estava perdida. Irremediavelmente perdida. Para se distrair do absurdo da constatação, inalou com redobrada convicção o jasmim em queda pelo ar e lembrou-se de como detestava aquele cheiro que quase a fazia vomitar. Sempre fora uma enjoadinha.
* Vinicius, claro, também de improviso, fora de contexto e muito por acaso