ergue a mão encontra hera e vê que ele mesmo era a princesa que dormia *
E então ela quis abraçá-lo, abraçá-lo e dizer-lhe que estava tudo bem, que ficasse com ela que tudo se comporia. Um disparate, claro, não só ele não poderia ficar com ela, como ela lhe faria a vida negra, se ficasse. Aliás, nenhum dos dois faria bem um ao outro, se decidissem partilhar a cama por mais do que umas breves horas. Só funcionavam como remédio para as dores mútuas porque se tomavam em pequenas doses, furtivas e violentas, que engoliam de uma vez e que lhes iam sobrando para os dias seguintes. Ela sempre se achara mais ansiosa por chegar a qualquer lado e via-o a ele no mesmo sítio, naquele patamar de sentimentos bem resolvidos onde estagnara depois da cacofonia sensorial que fora o enamoramento súbito e a deliciosa canalhice das vias de facto. Mas no fundo sabia que era exactamente o contrário: que corria para lado nenhum, presa dos seus fantasmas vivos, enquanto ele esperava que ela o salvasse, de algum modo inesperado e inventivo, como se o inverso de um conto de fadas. Toda a incerteza que sempre sentira quanto ao que a faria feliz, mirrara-lhe um bocadinho a alma e tornara-a frágil aos olhos de quem achava conhecê-la. De certo modo era verdade, essa fraqueza. Nunca gostara de deixar nada para trás e talvez fosse por isso que, mesmo sabendo que ele nunca seria seu, tinha vontade de o embalar com uma definitividade precisa e rigorosa, como aquela com que os cumes montanhosos se recortam contra o céu e o rasgam, nas tardes alaranjadas de Verão. A necessidade de o ter no colo era tal que parecia serradura no estômago, ela agoniada e seca, sem notar que o aparente altruísmo de o consolar era na verdade o desejo egoísta de sentir mais uma vez a clandestinidade da sua pele na dele, ao arrepio da ordem natural das coisas e dos seus horários. Também ainda não percebera porque é que por vezes lhe parecia que ele se poderia partir em dois ou mesmo desmoronar; ele era uma fortaleza alcandorada a um ponto estratégico qualquer de onde podia ver tudo e saber de todos (em especial dela), seguro e controlado, parcimonioso na desmesura da entrega e regrado nos impulsos mais básicos. O tipo de homem que cai de pé. No entanto imaginava-o a implodir, uma ruína de pedras e canhões ao mar, indefeso a deixar-se invadir e espoliar, e ela a aproveitar o saque e a açambarcá-lo de modo eficazmente parasita. Ia no entanto fazendo de conta que não via as frinchas nas paredes grossas, que só ela é que os contrafortes meio partidos, as ameias demasiado largas e os flancos demasiado expostos. Que ela a mulher de conveniência, a qualquer hora do dia ou da noite. Não se importava que fosse essa a implícita combinação entre eles, nada nunca era o que parecia e a sua disponibilidade, temerária e arrojada, a roçar a inconsciência, era na verdade um modo desastrado de lhe pedir desculpa pela cobardia que a impedia de o salvar e ao mesmo tempo de se resgatar a si mesma, como ele lhe pedia que fizesse, gritando-lhe o seu silêncio fortificado.