Hoje tive um choque: ia à tarde no carro a ouvir a Comercial e de repente, sem qualquer aviso prévio, apanho com uma versão de Gaivota, cantada (?!) pelos inenarráveis The Gift (ou só pela inenarrável vocalista dos The Gift, não percebi bem). Fiquei horrorizada, a precisar de vir rapidamente para casa ouvir Amália, imbuir-me de Amália, comer Amália como Adriana comia Caetano, e encher-me até à medula dessa canção que é a prova maior de que Deus afinal existe e que um dia resolveu dar um ar da sua graça usando O´Neill, Amália e Oulman como Seus instrumentos. Choro que me farto a cada vez que me banho nisto, mas olhar de frente o Divino não é fácil para ninguém. Minha querida, não confirmei, mas imagino que fosse a isto que te referias aqui.
De noite tudo muda. Enquanto se esbatem os contornos de algumas coisas, cá dentro outras tomam forma, como se me tivesses feito um filho ou eu engolido qualquer coisa viva. É por esta altura que as dores incidem mais sobre a zona do esterno e que dou atenção redobrada ao que não presta, como a um filme qualquer de baixo orçamento ou àquilo que me disseste e de que eu não gostei. Por um mistério qualquer da física, o ar rarefaz-se e tudo em mim exala devagar. O meu corpo confunde-me, como se o umbigo na boca. Na noite cabem sempre muitos dias, pois nela as lembranças atropelam-se, são gente com pressa de chegar a casa, bichos rasteiros que se esgueiram pelos buracos da mente enquanto convoco inutilmente o sono. Tenho os poros abertos de medo e entrego-me à melancolia como o fazia contigo: sem outra solução à vista. Não há como deitar fora o excedente, é esperar que chegue o dia e com ele a medida certa dos actos e das palavras, a par com a devida contrição. Mas por agora, se fechar as luzes, pode ser que chegues mais depressa.