a estética do sofrimento alheio
Repugna-me o aproveitamento da dor - que está aqui ao lado mas que não é a nossa - para floreados literários e metáforas profundas, para fotografias e quadros belos. Trata-se de uma espécie de vampirismo do sofrimento alheio sem o consentimento de quem o sente, deslocando-o da perspectiva correcta, descontextualizando-o e de certo modo esvaziando-o. Até acredito que textos como este façam muito pela sensibilização em relação às causas e aos seus mártires, mas não me agradam. Baptista Bastos (BB), diz que "Aqui, a morte não consente metáforas”, e eu concordo. No entanto, logo a seguir, escreve: “Os braços de Alzarith estão abertos, crucificados num espanto sem palavras”. Afinal, parece que a morte consente metáforas. Só que a morte de uma criança não deveria ser poesia nem prosa poética, um quadro que exalte os sentidos ou qualquer outra forma de diversão artística: a morte de uma criança é uma grande desgraça. Quer dizer, até pode ser qualquer uma dessas coisas (assim de repente lembrei-me do jaz morto e arrefece), mas terá de haver um certo distanciamento espacial e temporal do objecto artístico, ou seja, este ser desprovido de actualidade imediata para eu o poder apreciar como arte. Se lhe vislumbrar intuitos panfletários, não obrigada. O resguardo de algum pudor em relação ao horror que nos é contemporâneo é também uma forma de respeito para quem sofre na pele esse horror. Por muito talento que se tenha (veja-se o caso de Sebastião Salgado), o que me desagrada é usar-se uma estética do sofrimento como auxiliar de uma tomada de posição de natureza política, seja ela qual for. Será preconceito meu em relação à liberdade de criação (ou talvez uma noção restritiva daquilo que é arte), mas desconfio de quem cria sensíveis instantâneos de grande beleza a partir da dor que ocorre nos outros. Da dor nas crianças, então, acho especialmente abjecto.