paris e futebol
No dia do primeiro jogo de Portugal estávamos em Paris e resolvemos assistir ao jogo num restaurante onde habitualmente se reúne a “comunidade portuguesa”. Rapidamente concluímos que tínhamos poucas saudades das febras, dos frangos assados, das mines, do carrascão e dos empregados a servirem-nos por especial favor, e optámos por uma brasserie lá perto, com um ecrã gigante. Onde, é claro, também havia um empregado português, mas este já sujeito às regras de bem servir francesas, pelo que não tivemos de lhe implorar pela comida, nem que nos matasse a sede. Depois da vitória, começámos a ouvir buzinas e gritos cá fora; nada de estranho, afinal, estávamos numa espécie de cantão português. Mas, a caminho dos Campos Elíseos, o barulho, em vez de diminuir, aumentava. Em menos de uma hora, a principal avenida francesa estava apinhada com milhares de portugueses, de carro e a pé, que pura e simplesmente pararam o trânsito e comemoraram como se Portugal tivesse ganho o campeonato. Eram maioritariamente portugueses de segunda geração, miudagem que não sabe sequer dizer “Portugal” e diz “Pórtiugale”. Paravam os carros quitados em segunda fila, abriam o porta bagagens, de onde saíam duas colunas de som gigantes, e punham no máximo coisas como o bacalhau quer alho e o arrebita, arrebita, arrebita, bem em frente a uma das lojas mais bonitas e luxuosas do mundo, a da sede da Louis Vuitton, num estranho paradoxo sonoro e visual. A reacção à polícia que, impávida e serena, ia passando, era de alguma provocação, mas sempre aquém de quaisquer excessos que pudessem levar à intervenção desta. Tudo soft e à boa maneira portuguesa, portanto. Aliás, a polícia francesa (pelo menos a parisiense) tem esta atitude que me parece admirável, que é a de só intervir quando as liberdades dos outros estão em causa. O trânsito em Paris, por exemplo, é uma eficiente contravenção em todas as direcções, porque só assim é possível a circulação simultânea de alguns milhões de pessoas: uma gestão de bom-senso, portanto. Bom, mas retomando o que estava a dizer: os poucos franceses, e os restantes estrangeiros, que conseguiam furar as barreiras formadas pelas bandeiras, a gritaria e a péssima selecção musical, respondiam com “Morue! Morue!” e “Ronaldô”, olhando os portugueses com aquela curiosidade divertida que se dispensa a uma cultura alienígena. Estranho, aquilo, ver cidadãos franceses, nascidos em França, alegando súbita pertença a um outro país que, se calhar, nem conhecem, exprimindo-se numa língua que falam mal, e fiéis a tradições que já só o são fora desse outro país, como os ranchos folclóricos ou o vira. Fiquei com a sensação de que ser português, lá fora, continua a ser o sonho de um dia deixar de ser português, embora não se saiba bem como. Já aqui o disse, eu sei, mas mais uma vez a ideia assaltou-me em força: parece que não há maneira de nos livrarmos disto, desta mediocridade endémica que nos faz sermos sempre iguais à caricatura que os outros fazem de nós.