beatriz
Tinha a cabeça em bico e era quase feia, o cabelo preto e luzidio colado à testa pequena, a pele manchada de vermelho e encarquilhada, como a de uma velhinha encalorada. Enquanto eu dilatava , ela nascia, eu dilatava, ela nascia, e eu só pensava na música que Chico cantara na noite anterior no pavilhão dos desportos, vai passar nessa avenida um samba popular… Eu a avenida, ela a sambar por mim afora. Foi ele, definitivamente, o culpado de ela ter vindo quinze dias mais cedo, sem aviso, naquela madrugada de domingo numa Lisboa muito quente e às moscas, num hospital quase vazio. É no que dá, pular nas bancadas com uma barriga de nove meses nas mãos. Se fosse rapaz, só poderia ter-se chamado Francisco, para depois ser Chico. Bom, mas passava ela nessa avenida que era eu, os leões ao lado a rugirem que nem doidos (só neste país, um zoológico ao lado de um hospital), e eu a delirar de dor e a querer saltar pela janela porque eles tinham de ser libertados, coitados dos leões, não é justo, e a minha tia enfermeira a tentar manter-me deitada, faz a respiração que aprendeste nas aulas, vá. Eu fiz, a manhã chegou muitos séculos depois, os corredores foram-se enchendo de gente ensonada, a cabeça em bico já de fora mal chegava à sala de partos. Dois dias depois e nós em casa, eu uma miúda, sem perceber nada de amores demasiados, com medo das mortes súbitas, das hipoglicémias e das hérnias umbilicais. Tudo muito delicado, pequenino, estranho, sensível, e até um bocadinho nojento. Nada de grandes paixões; antes, uma responsabilidade avassaladora, que me nauseava quando me apanhava desprevenida, nos intervalos entre sonos, banhos e mamadas, quando parava para pensar. Havia alturas em que não queria aquilo, em que queria voltar ao tempo de antes de ser mãe: livre, só a tomar conta de mim e a dormir dez horas por dia, era tão bom. Momentos da mais pura alegria, de um êxtase contemplativo quase físico, eram de repente substituídos por uma vontade de, sei lá, morrer (podia ser?), da qual nunca falei a ninguém, envergonhada, sem saber que nome lhe dar. Era muito, muito, nova, apercebo-me agora. Havia coisas às quais não sabia ainda dar nomes, só mais tarde. Felizmente o amor foi vindo, poderoso e incondicional, e substituiu devagarinho o medo de fazer mal, bem como o pânico de que ela me desaparecesse de repente dos braços. O amor enche-nos de confiança e de força, é uma espécie de fé - e isso ajuda muito. Fiz disparates, continuo a fazê-los; e adivinho-lhe facilmente as falhas, as faltas e as aldrabices: basta pôr-me no lugar dela e subtrair-me vinte anos – o que não torna as coisas necessariamente mais fáceis. O facto de ela me estar a sair uma miúda bestial , muito melhor do que eu, é para mim um agradável mistério que não tenho, por enquanto, especial interesse em desvendar.