o salteador dos afectos perdidos
por Vieira do Mar, em 03.03.08
É um tipo de homem que faz alguns estragos. Provoca sentimentalmente as mulheres, da mesma forma que estas (algumas delas) provocam sexualmente os homens: com empenho, persistência e gozo. Tem geralmente uma vida sem detalhes amorosos relevantes; não porque não tenha quem goste dele (aliás, é geralmente uma pessoa adorada), mas porque é incapaz de retribuir o amor na mesma medida. Sente-se afectivamente incompleto e sabe que o defeito está nele pelo que, como um vício, alimenta-se da paixão que induz em outras mulheres na esperança de que alguma um dia o preencha. Ateia chamas como um pirómano no pico do Verão; provoca um fogo de cada vez, numa mata criteriosamente escolhida e na qual se insinua, rasteiro. Acende uns fogachos aqui e ali, em várias frentes, até lhes ser difícil, a elas, combaterem o fogo todo de uma vez. Provoca amiúde verdadeira devastação e um rescaldo que se prolonga no tempo. Porque ele nunca se envolve e sai de cena sempre a meio; e não dá nada de si parecendo que se entrega inteiro (porque tem pouco para dar, na verdade, quase nada). Quando se apercebe da seriedade e empenho do sentimento alheio, retrai-se e tenta várias estratégias. Uma (a mais frequente e cobarde) é recorrer ao humor e à ligeireza: tenta brincar com o monstro que criou, transformá-lo num gatinho inofensivo, para que não se torne numa ameaça. Isto tende a confundir aquela que, enquanto ainda arde, não percebe a razão de tais baldes de água fria. Por forma a manterem a face, elas alinham no jogo e, se não lhe respondem na mesma moeda (porque por enquanto não conseguem: aquilo queima), fingem que ele está efectivamente a conseguir apagá-las e acabam por aceitar o lugar de canto para onde são relegadas. A seguir, dá-lhes a entender que foram elas que interpretaram mal os sinais, numa cerimónia de transferência de culpa. Aceitam-no, por fim, como amigo e renegam quaisquer recordações de algo mais, com vergonha de estarem a ultrapassar a linha invisível que ele lhes traçou. Este tipo de homem é perigoso porque deixa nas mulheres por quem passa um sentimento de pendência que se prolonga no tempo, uma sensação de qualquer coisa por resolver e de incompletude emocional, uma necessidade de encerrar um ciclo, de voltar atrás e de remediar as coisas, talvez vivenciando-as de facto. Pode tornar-se numa obsessão, sem o saber. Mas não se pense que as mulheres que seduz são vítimas inocentes, nada disso. Geralmente comprometidas e com filhos (para que fiquem sempre com um pé preso noutro sítio e não se aventurem demais), são, não tanto carentes de afecto, mas mais carentes de um pouco de aventura nas suas vidas planas. Sabem no que se estão a meter e julgam que o risco compensa. Ao princípio, existe de facto uma satisfação mútua que se traduz num fino equilíbrio de vontades e numa consciência comum dos limites. Quando acaba o entusiasmo (através do tal fim subtilmente induzido por ele), resta-lhes geralmente uma amizade distante, à qual de vez em quando aflora a excitação antiga. Só há um azar susceptível de comprometer esse equilíbrio: a perda do sentido de exclusividade, pois cada uma se reconforta no facto de ter sido única . É este sentido, o de último reduto, de once in a lifetime, que sustenta o risco e que o justifica, que faz tudo ter valido a pena. Se, por manifesta estupidez ou desleixo dele, elas descobrem que assim não é, que foram apenas uma peça de um jogo que se repete, desmorona-se o precário edifício de afectos que vinham confabulando, o que pode ter consequências imprevisíveis. Isto porque a simples constatação de que o salteador irá uma vez mais ficar impune e passar incólume é pura e simplesmente inaceitável. Aquilo que alguns classificam desdenhosamente de despeito, muitas vezes mais não é do que a vontade de repor a ordem cósmica das coisas. E, convenhamos, não há melhor combustível para a vingança do que a unilateralidade das lágrimas (mesmo daquelas que já secaram há muito).