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I just smiled.
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I just smiled.
I just smiled.
Tolhida entre o ensino do português num liceu problemático, as reuniões do condomínio e a selecção dos bifes da pá, Teresa chegava a casa e, imediatamente antes de Pedro entrar pela porta, sublimava o seu tédio de mulher demasiado casada em textos sobre amores que não vivera. Num bloguezinho intimista, forrado a ais e a uis, comprazia-se anonimamente na descrição de emoções universais que por todos distribuía, generosa - e que a todos cabiam que nem uma luva. Aos poucos, textos seus começaram a ser citados, reproduzidos e enxertados aqui e ali; e chegaram até ao Brasil, copiados em páginas brilhantes e animadas com fadas, duendes e espíritos pagãos. A propósito de Brasil: nicinha era brasileira. Percorria o corredor entre a recepção e o WC dos funcionários com trejeitos sambistas e sotaque de rica de novela, embora fosse na verdade do nordeste, lá para os lados do Piauí, mais virada para o forró e o enrolar arrastado das consoantes. No escritório, todos os homens queriam a nicinha, com aquele seu riso tímido de personagem boa que sempre vence no final, e uma bunda - essa sim, carnavalesca! - que todos imaginavam forrada a plumas, paetês e purpurinas. Mas nicinha, desde que ali chegara, só tinha olhos para Pedro. Ah, o Pedro. Português sóbrio com ar de compromisso, como só o português sabe ter, aquele charme quase europeu de homem sério, e que vivos rumores diziam ser controlado por uma mulher gárgula, assustadora e possessiva. Mesmo assim, a nicinha resolveu seduzir o Pedro, afinal, ainda está para nascer português que resista ao cerco cerrado de brasileira, para mais uma de ciclópica bunda e olhos pequenos de carneiro mal-morto, genuinamente apaixonada e compenetrada da sua paixão. De dentro do balcão da entrada, por cima do tampo quase ao nível dos seus olhinhos de índia, nicinha vigiava Pedro, trespassando os vidros entre eles, e conhecia-lhe de cor os modos. Sabia que, quando começava a tremer a perna esquerda, estava a ficar precisado de ir lá fora fumar; que, quando agarrava o cabelo com a mão e o repuxava para trás num gesto rendido, era com a mulher gárgula que estava a falar e que, quando esfregava os olhos lá pelas onze, era hora de ela lhe levar o nespresso, antecipando-se-lhe. Começou por mails inofensivos, algumas piadas brejeiras mas sem descambar, e uns pensamentos em power point sobre a inevitabilidade do amor, com Vinícius em fundo e umas frases do Paulo Coelho. Ele chamava-a para agradecer, polido, ou acenava brevemente a cabeça do outro canto do open space, e então o coração de nicinha esvoaçava e batia, desnorteado, contra o tampo de madeira falsa que a rodeava e prendia. Pedro, de olho na promoção, mantinha a distância, a competência e o respeito, e fitava-lhe os olhinhos pequenos com condescendência quase paternalista, como se ela uma adolescente enfatuada e um pouco iludida. Na verdade, sonhava acordado com aquela bunda emplumada só para ele e o risinho a transbordar de praia e mar. Foram-se tendo assim por uns tempos, à boca da secretária dele, por cima do balcão dela ou quando se cruzavam entre portas. Às tantas, nicinha resolveu subir a parada e atreveu-se a imagens mais explícitas, de conteúdo muito gráfico, reproduzindo-se em posições inusitadas e chamando os bois pelos nomes. Pedro dizia que sim, que talvez, que não, que era casado e amava a mulher. Nicinha tentou de tudo: decotes muito reduzidos, anedotas indecentes, fotos dela em poses sugestivas, agora uma alça do soutiã, depois um mamilo espetado, por fim, a bunda escarrapachada na lente. Mas Pedro, apesar dos ligeiros roçagares um pelo outro, continuava a agradecer gentilmente o nespresso, a fumar sozinho na varanda e a repuxar para trás o cabelo ao telemóvel: aflito primeiro, apaziguado depois, a despedir-se da gárgula com um sorriso manso. E nicinha roída, enciumada de uma mulher que não conhecia, invejosa dela e do seu poder amoroso. Resolveu jogar sujo, dar o tudo por tudo e, sabendo-o sensível e letrado, vai de lhe atirar com poesia e prosa poética, com tudo o que de massacrado e de profundo lhe vinha parar às mãos. Um dia recebeu um texto. Um daqueles que vêm em corrente, perdidos na origem e de autor desconhecido, que é de todos e não é de ninguém. Leu aquilo de uma vez e um formigueiro acorreu-lhe aos dedos como se os tivesse fechados há horas; sentiu a alma tão vasculhada por dentro que até chorou. Era exactamente o que sentia por Pedro: um desespero doentio, os ciúmes da legítima que com ele partilhava a cama, os filhos, o corpo e a escova de dentes. Era aquela, a raiva que a invadia a horas mortas quando o sonhar já não chegava e a crueza do dia lhe surgia pelas frestas do estore do apartamento alugado, deixando antever os baldios separados por caniçais. Era aquele, o fogo que a trepava quando adivinhava que outra o acordava com um beijo e lhe escolhia a gravata com que ele lhe chegaria nessa manhã, pronto para mais um namoro discreto entre emails, biombos e vidros, para mais um cafezinho às onze, tirado por antecipação. Resolveu, numa afoiteza súbita, fazer-lhe um forward do texto. Já está, agora, ele vai perceber o que eu sinto, vai dar valor. Entretanto, já em casa, Teresa, roída por idêntico sentimento, resolve vasculhar a privacidade virtual de Pedro. A palavra passe é de certeza qualquer coisa com o nome do cão da família e a sua data de nascimento, ou vice-versa (Pedro é signo Leão, está no centro do mundo e ama com magnanimidade os animais que se lhe submetem e que o adoram, como é o caso). Não tardou a entrar na caixa pessoal daquele e logo o nome no remetente, nicinha, que associou a perfume barato e a colegial atrevida, lhe chamou a atenção. Com avidez nervosa e a nuca suada, carregou para abrir e, numa bonita font arrial narrow, viu o seu texto, aquele que havia escrito cerca de um mês antes num acesso de tragédia e perante o avassalo de um ciúme daninho. Em anexo, uma foto de nicinha, de olhos sumidos e boquinha de broche, com o fio dental enfiado nas carnes da pomposa bunda, equilibrada no parapeito descascado da marquise e recortada na paisagem triste do subúrbio, com a linha de Sintra em fundo. Na mão, um coco de plástico ganho numa promoção de Verão e uma palhinha rosa, por onde nicinha fingia sugar qualquer coisa evidentemente fresca e muito tropical. Teresa pasmou, incrédula. O texto dela, deambulando anónimo e reeenviado pela nicinha tropical de plástico para o seu Pedro! Aquilo que ela, Teresa, não fora capaz de lhe dizer na cara e que por isso despejara no mundo, chegava-lhe a final pelas mãos de alguém que era o motivo e a razão abstracta que a levara a escrevê-lo. Porque, era um facto: entalada entre as aulas, as reuniões e os bifes da pá, e de costas viradas para Pedro quando este chegava a casa, Teresa tinha pavor das nicinhas deste mundo.
Tolhida entre o ensino do português num liceu problemático, as reuniões do condomínio e a selecção dos bifes da pá, Teresa chegava a casa e, imediatamente antes de Pedro entrar pela porta, sublimava o seu tédio de mulher demasiado casada em textos sobre amores que não vivera. Num bloguezinho intimista, forrado a ais e a uis, comprazia-se anonimamente na descrição de emoções universais que por todos distribuía, generosa - e que a todos cabiam que nem uma luva. Aos poucos, textos seus começaram a ser citados, reproduzidos e enxertados aqui e ali; e chegaram até ao Brasil, copiados em páginas brilhantes e animadas com fadas, duendes e espíritos pagãos. A propósito de Brasil: nicinha era brasileira. Percorria o corredor entre a recepção e o WC dos funcionários com trejeitos sambistas e sotaque de rica de novela, embora fosse na verdade do nordeste, lá para os lados do Piauí, mais virada para o forró e o enrolar arrastado das consoantes. No escritório, todos os homens queriam a nicinha, com aquele seu riso tímido de personagem boa que sempre vence no final, e uma bunda - essa sim, carnavalesca! - que todos imaginavam forrada a plumas, paetês e purpurinas. Mas nicinha, desde que ali chegara, só tinha olhos para Pedro. Ah, o Pedro. Português sóbrio com ar de compromisso, como só o português sabe ter, aquele charme quase europeu de homem sério, e que vivos rumores diziam ser controlado por uma mulher gárgula, assustadora e possessiva. Mesmo assim, a nicinha resolveu seduzir o Pedro, afinal, ainda está para nascer português que resista ao cerco cerrado de brasileira, para mais uma de ciclópica bunda e olhos pequenos de carneiro mal-morto, genuinamente apaixonada e compenetrada da sua paixão. De dentro do balcão da entrada, por cima do tampo quase ao nível dos seus olhinhos de índia, nicinha vigiava Pedro, trespassando os vidros entre eles, e conhecia-lhe de cor os modos. Sabia que, quando começava a tremer a perna esquerda, estava a ficar precisado de ir lá fora fumar; que, quando agarrava o cabelo com a mão e o repuxava para trás num gesto rendido, era com a mulher gárgula que estava a falar e que, quando esfregava os olhos lá pelas onze, era hora de ela lhe levar o nespresso, antecipando-se-lhe. Começou por mails inofensivos, algumas piadas brejeiras mas sem descambar, e uns pensamentos em power point sobre a inevitabilidade do amor, com Vinícius em fundo e umas frases do Paulo Coelho. Ele chamava-a para agradecer, polido, ou acenava brevemente a cabeça do outro canto do open space, e então o coração de nicinha esvoaçava e batia, desnorteado, contra o tampo de madeira falsa que a rodeava e prendia. Pedro, de olho na promoção, mantinha a distância, a competência e o respeito, e fitava-lhe os olhinhos pequenos com condescendência quase paternalista, como se ela uma adolescente enfatuada e um pouco iludida. Na verdade, sonhava acordado com aquela bunda emplumada só para ele e o risinho a transbordar de praia e mar. Foram-se tendo assim por uns tempos, à boca da secretária dele, por cima do balcão dela ou quando se cruzavam entre portas. Às tantas, nicinha resolveu subir a parada e atreveu-se a imagens mais explícitas, de conteúdo muito gráfico, reproduzindo-se em posições inusitadas e chamando os bois pelos nomes. Pedro dizia que sim, que talvez, que não, que era casado e amava a mulher. Nicinha tentou de tudo: decotes muito reduzidos, anedotas indecentes, fotos dela em poses sugestivas, agora uma alça do soutiã, depois um mamilo espetado, por fim, a bunda escarrapachada na lente. Mas Pedro, apesar dos ligeiros roçagares um pelo outro, continuava a agradecer gentilmente o nespresso, a fumar sozinho na varanda e a repuxar para trás o cabelo ao telemóvel: aflito primeiro, apaziguado depois, a despedir-se da gárgula com um sorriso manso. E nicinha roída, enciumada de uma mulher que não conhecia, invejosa dela e do seu poder amoroso. Resolveu jogar sujo, dar o tudo por tudo e, sabendo-o sensível e letrado, vai de lhe atirar com poesia e prosa poética, com tudo o que de massacrado e de profundo lhe vinha parar às mãos. Um dia recebeu um texto. Um daqueles que vêm em corrente, perdidos na origem e de autor desconhecido, que é de todos e não é de ninguém. Leu aquilo de uma vez e um formigueiro acorreu-lhe aos dedos como se os tivesse fechados há horas; sentiu a alma tão vasculhada por dentro que até chorou. Era exactamente o que sentia por Pedro: um desespero doentio, os ciúmes da legítima que com ele partilhava a cama, os filhos, o corpo e a escova de dentes. Era aquela, a raiva que a invadia a horas mortas quando o sonhar já não chegava e a crueza do dia lhe surgia pelas frestas do estore do apartamento alugado, deixando antever os baldios separados por caniçais. Era aquele, o fogo que a trepava quando adivinhava que outra o acordava com um beijo e lhe escolhia a gravata com que ele lhe chegaria nessa manhã, pronto para mais um namoro discreto entre emails, biombos e vidros, para mais um cafezinho às onze, tirado por antecipação. Resolveu, numa afoiteza súbita, fazer-lhe um forward do texto. Já está, agora, ele vai perceber o que eu sinto, vai dar valor. Entretanto, já em casa, Teresa, roída por idêntico sentimento, resolve vasculhar a privacidade virtual de Pedro. A palavra passe é de certeza qualquer coisa com o nome do cão da família e a sua data de nascimento, ou vice-versa (Pedro é signo Leão, está no centro do mundo e ama com magnanimidade os animais que se lhe submetem e que o adoram, como é o caso). Não tardou a entrar na caixa pessoal daquele e logo o nome no remetente, nicinha, que associou a perfume barato e a colegial atrevida, lhe chamou a atenção. Com avidez nervosa e a nuca suada, carregou para abrir e, numa bonita font arrial narrow, viu o seu texto, aquele que havia escrito cerca de um mês antes num acesso de tragédia e perante o avassalo de um ciúme daninho. Em anexo, uma foto de nicinha, de olhos sumidos e boquinha de broche, com o fio dental enfiado nas carnes da pomposa bunda, equilibrada no parapeito descascado da marquise e recortada na paisagem triste do subúrbio, com a linha de Sintra em fundo. Na mão, um coco de plástico ganho numa promoção de Verão e uma palhinha rosa, por onde nicinha fingia sugar qualquer coisa evidentemente fresca e muito tropical. Teresa pasmou, incrédula. O texto dela, deambulando anónimo e reeenviado pela nicinha tropical de plástico para o seu Pedro! Aquilo que ela, Teresa, não fora capaz de lhe dizer na cara e que por isso despejara no mundo, chegava-lhe a final pelas mãos de alguém que era o motivo e a razão abstracta que a levara a escrevê-lo. Porque, era um facto: entalada entre as aulas, as reuniões e os bifes da pá, e de costas viradas para Pedro quando este chegava a casa, Teresa tinha pavor das nicinhas deste mundo.
Um gesto lépido, um encolher de ombros, uma frase. A ela, basta-lhe uma frase, em especial se sincera. Não porque o pretenda ser ou faça por isso, mas porque a verdade circula nos meandros que a compõem. Então ela recolhe-se, como se um corpo estranho. Uma frase simples, que traduza a reacção adequada à provocação sem sentido. Que, de tão normal, mediana (gaussiana), a faz sentir-se diferente, avariada, sem remédio. Que lhe cala as palavras dentro ainda antes que se formem: letras avulsas passarão a correr nela como linfa. A loucura e o desgoverno alimentam-se do excesso que criam; a normalidade é autofágica. Ela preferiria que a razão lhe permitisse ser fugaz (a razão, esse conceito que lhe é longe como o recorte de cordilheiras). Ela quereria não ver a vida na progressão geométrica do desespero. Às vezes, acorda e estremunha, mas nem por isso mais lúcida, apenas mais cansada. Só não é uma criatura sombria porque não se leva a sério. Ela precisa de fazer nada, para sustentar o delírio. Esconde o desvario nas palavras que não escreverá e encaixa num recanto de si a frase normal, como se esta lhe fizesse cócegas para sempre.