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Eu podia encenar aqui um teatrinho de fénix renascida, mas a verdade é que, senhores!, a criançada toda numa excitação que não se aguentava e nem um vidro partido, uma telha arrancada, nem sequer um coqueiro derrubado! Os preparativos foram muitos, que o hotel é previdente: afinal, não lhes interessa afugentar turistas, que são o sustento daquele país pobre e sem indústria, que vive à base dos serviços (leia-se, da escravatura braçal dos autóctones). Assim, amarraram-se as espreguiçadeiras, recolheram-se os bares, encerrou-se a praia, prenderam-se os candelabros com cordas, encheram-se os vidros de fita-cola e experimentaram-se os alarmes: nada. Nadinha. Nem um cheirinho que se visse do Dean. Bom, não é bem verdade: algures a meio da manhã, a água entrou em golfadas pela frincha da porta do quarto, as palmeiras do jardim vergaram-se a ventos violentos e a uma chuva torrencial, de tal modo que as pessoas que seguiam na rua tiveram de se abrigar e agarrar a qualquer coisa. Mas durou, quê?, cinco minutos, vá – nem deu para filmar e depois vender como um momento aterrorizador de extremo perigo, tipo as forças dos elementos versus o frágil ser humano. Avisada por uns turistas portugueses amigos, eu, maricas como sou, postei-me logo em frente à CNN e dali não saí até a imagem de satélite repetida à exaustão - aquele remoinho vermelho assustador - se ter começado a aproximar do Haiti. Cheguei à conclusão que os norte-americanos, ou estão tão distraídos que permitem desastres hecatombicos como o Katrina, ou entram pura e simplesmente numa histeria mediática, por antecipação. Por momentos, juro-vos que pensei que estávamos mesmo em maus lençóis e que o maior furacão do mundo abater-se-ia por todas as Caraíbas, numa espécie de dilúvio final, um ajuste de contas divino com o pecado no paraíso. A Jamaica seria, seguramente, varrida do mapa, o México iria pelo mesmo caminho e não restaria turista para contar a história. Entretanto, aquilo começou a cheirar-me a esturro: a CNN lá ia mostrando umas imagens de ondas a rebentarem contra pontões e de palmeiras vergadas a ventos efectivamente fortes mas, caramba, por aquilo que vi, nada muito pior do que as nossas tempestades de Inverno, atlânticas, com as suas ondas de cinco metros e a ventania de cem à hora, as marés vivas e as nortadas de Verão. Para quem, como eu, se habituou a ir a águas com a bandeira encarnada, não me pareceu lá grande espingarda. Na imagem que vi, os carros, pelo menos, continuavam alinhados no parque de estacionamento. Quer-me parecer que as mortes e os prejuízos entretanto ocorridos, mais do que pela violência extrema do embate dos ventos (inegável, porém), se explicam pela precariedade de vida daquela gente, que se abriga em barracas com telhados feitos de folhas de palmeira ou, na melhor das hipóteses, de placas de zinco. Concluo que, para a norte-americana CNN, a perspectiva da desgraça que se abriga na miséria alheia não passa de um circo hiperbolizado, do qual sairão sempre novas e fresquinhas headlines e que, quanto pior, melhor. Tipo abutres, ou qualquer coisa assim.