...
A carta do Mantorras
Esta história tem muita piada, garanto-vos. Desde sempre (e ao contrário do que dizem os angolanos) as cartas angolanas não têm validade em Portugal, uma vez que Angola se recusou a assinar a Convenção de Viena sobre Tráfego Rodoviário, documento que rege as normais internacionais de circulação pelo mundo fora. Logicamente, e tratando-se de crime face à lei portuguesa, nas operações stop, angolano detido nestas circunstâncias é levado ao Tribunal de Pequena Instância Criminal Mais Próximo (TPIC), julgado e condenado em pena de multa. O que é engraçado é que esta pequena “revanche” de Eduardo dos Santos é a prova provada de que não basta ter cursos e usar-se fatos Armani para se ser civilizado. É claro que, não tendo ratificado qualquer convenção, nas estradas angolanas vive-se o regabofe total, e toda a gente conduz, por entre a corrupção às claras e a precariedade da legislação. Ou seja: não há lei que impeça os portugueses de lá conduzirem, o que eles fizeram até agora - parece que, entretanto, foi feita uma à pressa. E porquê? Porque o ícone máximo daquele país de treta, o aleijadinho sem sorte do Mantorras, teve o azar de ser “apanhado”, como centenas de outros jovens angolanos o são diariamente, pagando as suas multas seguramente com muito mais dificuldade do que o ídolo. Agora, ainda mais engraçado: imaginem um país à beira-mar plantado, com centenas de juízes e de delegados que seguem a única solução lógica e juridicamente possível: não ratificou a convenção, a carta não é válida, pronto. De seguida, ficcionem que existe uma pequena comarca com um TPIC que tem duas secções e dois juízos, cada um com o seu juiz e magistrado do Ministério Público. Acontece que um dos juízes (chamemos-lhe o juiz 1) acordou um dia, teve uma epifania e resolveu que, no seu juízo e a partir daquele dia, as cartas angolanas passariam a ser válidas em Portugal. A procuradora-adjunta que com ele trabalha, anuiu na tese peregrina, vá lá a saber-se porquê. A tese desenvolve a ideia mais ou menos estapafúrdia que, como Portugal assinou uma Convenção Rodoviária quando ainda era possuidor das colónias e destas fazia parte Angola, tal convenção também se aplica a Angola. É claro que passamos por cima do facto de Angola ser um país independente, com poder de auto-determinação e assim, apesar de tretoso e corrupto. Resultado prático: Cada juiz está de turno aos presos, semana sim, semana não; ora os polícias já sabem que, trazendo os angolanos ao juíz um e respectivo Ministério Público, aqueles são imediatamente soltos e o processo arquivado de imediato. Aproveitam, então, para fazer as grandes stops, as grandes rusgas, nas semanas do juiz dois, que chega a ter mais de quarenta sumários num só dia. E não há ninguém: o Conselho Superior da Magistratura, os Tribunais Superiores, a PGR - ninguém, que impunha a uniformização da questão. Angola é a República das Bananas, mas Portugal não o é menos, quando os arguidos são julgados de forma oposta graças às epifanias da independente e inamovível judicatura. Afinal, se o Mantorras tivesse sido apanhado na comarca e na semana do juiz um, não haveria notícia; o mesmo teria sido mandado na paz do Senhor e os angolanos não teriam feito a triste figura que andam a fazer, à caça de condutores portugueses. Palhaços. Todos.
Adenda: no Público de hoje vem um artigo de Rui Tavares intitulado “Sim, deixem guiar o Mantorras”. O dito artigo é um cadinho de desinformação, tentativas falhadas de humor e de paternalismo bacoco para com os angolanos. A deteminada altura, surge esta pérola (e eu cito): “ (…) os angolanos não começaram “de um dia para o outro” a confiscar cartas de condução portuguesas. Pelo contrário, fomos nós que, de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, começámos a confiscar cartas angolanas”. Confesso que dei a voltas a isto a ver onde estaria a ironia ou qualquer outra figura de estilo menos perceptível. Não encontrei. Ele quer mesmo dizer aquilo. E está a enganar quem o lê. Rui Tavares: desde sempre que as cartas angolanas são inválidas em Portugal (pelo menos, desde o desmembramento das colónias e da transformação de Portugal num Estado de Direito). Quer sentenças nesse sentido de há quantos anos? Dois, três, quatro? Eu arranjo-lhe. Por favor, que artigo tendencioso, tão cheio de “bocas” e de factos incorrectos. Enfim, que artigo tão mauzinho.
Graças à generosidade de Joana Amaral Dias, temos a pérola jornalística em questão na blogoesfera, aqui.