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No outro dia, fiquei sem gasolina a meio da Calçada de Carriche, na subida, na via do meio e à hora de ponta. Depois de amaldiçoar tudo o que tem pernas e mexe, chamei o meu ACP privado, ou seja, o meu paizinho, enverguei aquele magnífico colete que nivela todos os portugueses por igual e por baixo, pus o triângulo nos regulamentares, quê?, trinta metros?, e sentei-me envergonhadamente no carro sem querer olhar a fila de trânsito que me precedia e que, por então, já chegava à Malveira. Certo é que a ajuda não chegava e, para todos os efeitos, quem me visse ali naquele colete infernal, a roer as unhas e a bufar de raiva, com os piscas ligados e um triângulo à distância regulamentar, presumiria que o carro se teria... avariado, certo? Certo. Mas nem isso impediu que, ao passarem por mim, os tugas e as tugas periféricos, suburbanos e maioritariamente desfavorecidos, me gritassem os piores impropérios. Enquanto os camionistas me gabavam a anatomia (que podia ser a de um ananás: seria sempre gabável e motivo de grande diversão), os outros chamavam-me de puta para baixo e mandavam-me andar. Juro, mandavam-me andar, como se eu tivesse parado ali, no sítio mais feio de Lisboa e arredores que conheço, para um piquenique. Não um, nem dois, nem dez: dezenas de grunhos e grunhas a chamarem-me nomes e a dizerem-me que avançasse. Parece que estaria a empatar o trânsito. Ainda não havia reparado... Para cúmulo, quando já pensava que a ajuda paterna havia sido engolida por tubarões geneticamente modificados, começo a ver, pelo retrovisor, os carros a acelerarem na subida e a virem perigosamente contra a traseira do meu. Alguns paravam a centímetros do pára-choques, a pedirem a minha cabeça, indignados. E eu, mas que merda, o triângulo deve ter caído. Saio do carro, avanço pela turba furiosa que pede o meu linchamento e reparo que o triângulo... foi furtado! Sim, alguém, enquanto me chamava de cabra rica, vingava-se finalmente da injustiça de ter nascido na base da pirâmide social, e acrescia à minha humilhação o prejuízo económico e o perigo de vida. Foi um bonito e encantador momento de Portugal real, que fez com que o que me aconteceu ontem até tivesse sido querido e me tivesse dado vontade de convidar o meu inimigo estradal para um café: a caminho de uma rotunda, um beto no seu inevitável suv tentava fazer qualquer coisa com o telemóvel (talvez algo difícil, como marcar) e andava de faixa em faixa, não me deixando ultrapassá-lo (para não variar, eu estava com pressa). Depois de uma chuva de máximos, lá consegui passar-lhe à frente, com uma gazada súbita e entrei logo na primeira à direita. Pois parece que ele queria ir em frente para a segunda saída, não pode e não gostou, porque estava na faixa de fora e, se seguisse rotunda fora, batia-me. Fez uma travagem, todo assustado, coitado, disse-me umas coisas com o vidro fechado e eu mandei-o pastar. Obrigado a cortar igualmente à direita, parámos lado a lado no sinal. Aí pelos trinta anos, o cabelo amarelo à Herman, num estilo Gant que lhe caía bem e quase de certeza um dos participantes no blogue do não, o beto começou a minha evangelização: que não devia tê-lo ultrapassado, que tinha criado uma situação de perigo (eu?!) e iadaiadaiada. Chateada que nem um peru e sem vontade de lhe explicar que fora o seu comportamento errante e a merda da inabilidade para carregar botões que haviam provocado a coisa, mandei-o novamente dar uma curva, ir pastar, caçar gambuzinos, dar uma volta ao bilhar grande, experimentar um novo tom para o cabelo... Entretanto o sinal fica verde, eu a prepar-me para aquele impropério final e cobarde que a gente dispara antes de arrancar e ele, A menina estava a precisar de umas palmadas, ai estava, estava! Confesso que fiquei sem fala. A perspectiva de um bondage sadomaso meiguinho com o beto de cabelo amarelo, o carinho quase paternal que senti no castigo proposto... quebraram-me completamente as defesas e fizeram-me ver o conflito estradal a toda uma nova luz. E, lá está: apeteceu-me convidá-lo para um cafezinho e até pôr-me de certa forma a jeito...