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O povo exalta-se ou exulta, consoante os ventos informativos: parece que o processo apito dourado vai ao ar! A Lei de nada vale pois é inconstitucional! Os malandros/espertalhaços/heróis (escolher uma) dos árbitros acusados vão safar-se! A nossa Justiça é uma farsa! Um embuste! Bem, não digo que não seja, no entanto, deixem-me só largar aqui umas achazinhas jurídicas para esta fogueira e isto, só porque não gosto de me sentir manipulada pelos media, muito menos sabendo que os outros, pela sua ignorância funcional, ainda o são mais.
Então, é assim. Embora um bocado às cegas, dado que não conheço o processo e pouco li sobre o mesmo na comunicação social (e o que li foi devidamente filtrado, pois desconfio), presumo com alguma segurança que os árbitros que agora, supostamente, correm o risco de ir em paz tenham sido acusados de corrupção, ao abrigo do disposto nos art.ºs 2º e 3º do D.L. 390/91, de 10/10 (Corrupção no Desporto). Ou seja, existem indícios de que, naquela qualidade, terão aceite vantagens patrimoniais que não lhes eram devidas com o fito de alterarem ou falsearam o resultado de competições desportivas e, assim, praticado um ou mais crimes chamados específicos próprios, ou seja, que só podem ser assacados a pessoas com uma determinada qualidade (neste caso, a de árbitros, dirigentes desportivos, treinadores, etc.). Shegue...shegue...
Ao mesmo tempo, o Código Penal (CP) prevê o crime de corrupção passiva tout court que, embora mais abrangente, também é especiífico próprio, pois só pode ser praticado por funcionários. No entanto, é comummente aceite nas doutrina e jurisprudência que deve ser dado ao conceito de "funcionário", que surge no art.º 386º deste diploma, uma interpretação lata: "É funcionário público para efeitos penais todo aquele que é chamado a desempenhar uma actividade compreendida na função pública ou que, nas mesmas circunstâncias, desempenhe funções em organismos de utilidade pública ou nelas participe, e isto mesmo que tenha sido chamado provisória ou temporariamente, e ainda que não seja remunerado" (diz Maia Gonçalves, um guru destas coisas, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 14ª Ed. pág. 997).
Ora bem. A Federação Portuguesa de Futebol é uma entidade privada, mas de utilidade pública ( art.º 2 e 3 do D.L. 460/77 de 07/11), à qual compete a "gestão da Arbitragem" (vem no Regulamento da coisa...). Não é preciso enviesar muito o raciocínio para chegarmos à conclusão de que, para efeitos de imputação de um crime, um árbitro possa ser considerado um funcionário, certo? Shegue, shegue...
Por outro lado, como se depreende do teor do n.º 3 do art.º 358º do Código de Processo Penal (CPP), o Tribunal, tanto em sede de Instrução como de Julgamento, é livre para alterar a qualificação jurídica feita pelo MP e para pronunciar ou condenar por crimes(s) diferentes(s) dos constantes da acusação. Se, quanto aos factos, não pode verificar-se nenhuma alteração substancial, já no que concerne ao enquadramento jurídico dos mesmos, qualquer alteração é possível (em dependendo do que entretanto ficar, ou não, provado, claro). Shegue...shegue...na direcção do café do barbosa...
Isto significa que o juiz pode sempre concluir que os actos que o arguido praticou, configuram o crime B e não o crime A. Apliquemos agora isto à situação de um diploma cuja inconstitucionalidade tenha sido alegada a meio do processo. No despacho instrutório ou no Acórdão, nada impede o juiz de afirmar que o arguido y não praticou o crime de corrupção no desporto (porque, por exemplo, o diploma que o prevê foi declarado inconstitucional), mas que a sua actuação não deixa de poder subsumir-se ao crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto no art.º372º do CP.
Portanto, assim a uma primeira vista, não me parece de todo descabida que uma acusação ou pronúncia tendo por base o decreto-lei da corrupção desportiva, possa ser judicialmente convolada para uma condenação por corrupção passiva nos termos da lei penal geral. Teoria absurda? Talvez. E sim, o processo "apito dourado" até pode ir ao ar, como diz por aí o povo que, na falta de conhecimentos jurídicos e de ideias de sua lavra, adora papaguear os media (mesmo quando apregoam a certeza de uma inconstitucionalidade ainda não declarada). Mas também pode não ir. Até porque a complexidade actual dos ordenamentos jurídicos permite isto mesmo: que insignes jurisconsultos sejam pagos a preço de ouro para descobrirem brechas na lei e que outros sejam igualmente bem pagos (ou melhor) para descobrirem brechas nas brechas.