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Ao lado dela, ele dormia um sono inquieto, entrecortado por roncos, apneias e pontas soltas de pesadelos, pedaços das memórias revisitadas dos dias anteriores. Desperta, como um animal nocturno, os olhos abertos na escuridão, ela escutava-lhe o ressonar arrítmico, consonante com o seu coração, que lhe batia forte à entrada da glote, igualmente atormentado pelo que se haviam feito e dito, e pensava que nenhuma melodia lhe soara alguma vez tão bonita como o som que lhe vinha do fundo da garganta dele, a furar-lhes o silêncio, algures entre o ronronar de um felino e um motor engasgado. Olhou-o sem o conseguir ver, distinguiu-lhe os contornos voláteis e os olhos enxaguaram-se-lhe de ternura, uma ternura transbordante, daquelas que chegam de enxurrada, como há muito não sentia, a quadragésima onda na mudança da maré.
Os minutos iam comendo a noite e ela foi-se deixando ficar por ali, ao lado dele, vestida, sentada na cama, a imaginar-lhe as olheiras fundas que a irrequietude seguramente lhe desenharia no rosto de manhã, sem saber se haveria de ficar, de partir, de o deixar ir ou de o expulsar. Foi sentindo a respiração a ficar-lhe mais calma, a transformar-se num suspiro regular e longínquo, como o som de um comboio que se afasta na estação antes de ganhar velocidade. Naquela noite, qual premonição de morte, passou-lhe a vida frente aos olhos, os fantasmas dos passados, presentes e futuros, como no conto do Dickens e, como um matemático aplicado, criou equações elevadas à décima potência, desmembrou e separou todos os factores em jogo, identificou as operações a realizar, estabeleceu a ordem das mesmas e convenceu-se que partia para a resolução do problema. Mágoas com chaveta e sem chaveta, afectos entre parentesis e sem parentesis, menos discussão por menos dá mais, regras de três simples, multiplica por amor, divide por rancor, raiz quadrada de tanto querer, múltiplos de raiva, fracções compostas por tédio, bissectrizes de paixão. Definiu prioridades, traçou um rumo, remeteu as miudezas para o lugar próprio e encheu-se de boas intenções, como se enche uma almofada de penas de ganso, adormecendo com a cabeça cansada pousada nelas, enroscada no suave conforto da sua própria determinação. Nessa noite, o ronco dele, que tantas vezes a exasperara, irritara, deseperara e cansara, foi, por uma vez, o som mais bonito que ela já ouvira, um murmúrio de amor resgatado de um fundo lodoso, que a embalaria até muito depois da madrugada chegar e de ele se levantar, fazer a barba, deixar-lhe um bilhete junto ao lavatório (no qual lhe assinalava os erros óbvios na resolução da equação que ela formulara noite adentro), pegar na mala feita de véspera e sair baixinho, rodando a chave na fechadura e sustendo-a enquanto fechava a porta com todo o cuidado, para evitar que esta batesse e ela acordasse.