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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

...

por Vieira do Mar, em 24.02.06
auxiliar de dissuasões




Ela achava graça ao facto de ele lhe responder sempre com uma piada, um arremedo irónico ou um contraponto jocoso, provocando deliberadamente um anti-clímax desconcertante na conversa que estavam a ter. Ao mesmo tempo, irritava-a, não porque ela o achasse incapaz de falar a sério, mas porque a sua imensa seriedade (ele era na verdade uma das pessoas mais sérias que ela alguma vez conhecera) se escudava atrás daquele palavreado ligeiro, de quem parece guardar da vida uma grande brincadeira.

Ele usava o humor fácil, tanto como arma de arremesso como meio de fuga, consoante a estratégia que melhor lhe servisse para aniquilar os propósitos dela (que eram, invariavelmente, levá-lo a despir-se e ficar-lhe à mercê, com as veias da alma salientes e sob tensão, garroteadas por confissões íntimas). Mas o hábito de contar até três e fugir, de fingir que não era nada com ele e jogar às escondidas consigo próprio, era-lhe superior; desde sempre, aprendera a suster fraquezas e a tapar as suas frestas com doses maciças de gozo-cimento-cola, que depois estucava com afagos de sarcasmo e, por fim, cobria com pinceladas de conversa a despropósito.

Era um mestre no desconversar, fazia-o com uma subtileza admirável: nunca mudava de assunto (como fazem a maior parte das pessoas que pretendem desconversar) e atinha-se à questão principal, mas introduzia-lhe um desvio subtil, um atalho (ele o lobo, ela o capuchinho); no minuto seguinte e já o paleio aterrara na política internacional ou no estado de conservação das auto-estradas ( numa qualquer banalidade que o valesse).

Ela entrava no jogo, não por artes de uma qualquer ingenuidade cega (ela lê-lo-ia sempre, nem que fosse em braille), mas porque não queria perder o fio à meada da presença dele, do seu cheiro, das ondas hertzianas daquele riso, mesmo quando a gozava e se lhe negava, quando a ela lhe apetecia gritar e dizer-lhe que parasse de brincar e de fingir, que com ela não era preciso.

O que ela não entendeu (e ele também nunca se deu ao trabalho de lhe explicar) foi que, precisamente por ela ser quem era, mostrava-se especialmente preciso gozá-la; impunha-se-lhe mandar bocas, enfiar parvoíces no meio das tais frinchas e sujar com piadas fáceis os lavares de alma mútuos. Porque, mal davam por eles e lá estavam a escarafunchar-se, a arrancar-se aos bocadinhos, a lapidar-se aqui e a retocar-se ali, as palavras e os olhares como malho e cinzel um no outro.

A cada não-piada, sorriso ausente, seriedade presumida, assalto de pânico coração ao alto, de tanto se quererem, mergulhavam-se mais e mais e, enquanto ela se deixava nadar por ali fora a braçadas largas, como quem vai para o meio do oceano sem cuidar das reservas para o regresso à praia, ele tirava os pés da rebentação como se esta o queimasse, corria dali para fora como um miúdo, um medo da marévazia que nem espuma faze quando encontra a margem, e subia e subia as dunas até encontrar terreno seguro e seco., onde se deixava estar. Só então respirava fundo e descansava, enquanto encenava mais dúzia e meia de respostas prontas.

Era a história da vida dele, o deixar-se ficar em terra, como uma construção na areia, indestrutível na sua fragilidade sazonal, erigida a custo de muito trabalho de braço e baldes de água fria. Ninguém o levava a fazer algo que não quisesse e, para ele, era fácil não o querer, bastava-lhe desejá-lo e estalar os dedos. E era nesse não querer que entrava a piadola, um excelente auxiliar de dissuasões. Era isso!, aquela coisa de cortar a solenidade com um dichote, uma laracha, mais não era do que um excelente auxiliar de dissuasões, uma espécie de muleta para a sua personalidade coxa. E resultava: ela sentia-se amiúde como que a atirar o barro do seu coração à parede do sarcasmo dele; uma parede de tal forma grossa que mais lhe parecia uma muralha da china, um muro de berlim por derrubar. Por vezes, ela não vislumbrava quem estava por trás dele: se era aquele que volta e meia mergulhava a alma, a lavava, torcia, retirava o excesso e a punha a secar mesmo à sua frente, ou um desconhecido qualquer que lhe fazia malabarismos de circo à flor da pele.

Começou a entrar no jogo, mas o facto de não se encontrar devidamente equipada, dado o seu pragmatismo sincero e a sua impaciência nata, começou a incomodá-la: sentia-se pouco verdadeira e a chegar a lado nenhum. Ela, uma mulher feliz e de bem com a vida, sempre com o riso aos pés da boca, queria ensaiar-lhe frases dramáticas ao jeito de heroína trágica; imaginava a lançar-se-lhe aos pés e agarrar-se-lhe às mãos, via-se a confessar-lhe um amor que nem achava que sentisse, com laivos de folhetim tide e assomos de novela mexicana. Ela, uma mulher desmerdada e de conversa a direito, andava doida por pontinhas de desespero, por migalhas de olhares furtivos, declarações proibidas, pontos de exclamação e outras coisas improváveis de conseguir - por fatalidades a dois, enfim.

Mas cedo percebeu que, quanto mais o demonstrasse, mais ele lhe fugiria a sete pés, obséquio desta nossa natureza humana: quando um caça, o outro sente-se presa e foge. Por isso ela entrou no jogo e resolveu pagar para ver, com medo que ele se enfiasse para sempre selva adentro sem sequer olhar para trás, e só parasse a quilómetros dela, consumido pela exaustão. A uma piada ela respondia com outra; se ele, desprevenido, resvalasse para o sério, ela atalhava com o dichote da ordem e assim por diante.

Aconteceu que ele começou a não gostar de se ver reflectido nela, afinal, cabia-lhe a ele correr em frente, esse papel pertencia-lhe; não fazia sentido, serem duas presas que se fitavam face a face, sem fugirem, correrem ou serem caçadas, apenas impedindo o caminho natural das coisas, porque atravessadas ali no meio da vida uma da outra.

Repensou a estratégia, investiu contra ela como um rinoceronte enfurecido e nunca mais lhe ofereceu uma única verdade nua em pêlo. Os sorrisos de ambos, às tantas, de tanto se entrechocarem tipo gládios e se cravarem como espadas, amargaram-se em esgares; as piadas mútuas, essas, reduziram-se a notas de roda pé em suplemento de domigo. Algures lá pelo meio, perderam aquilo que poderiam ter sido e migrou-lhes, para sempre e para longe, a beleza que um dia lhes sobrevoara as vidas.

Durante anos, quedaram-se quase-amigos, mas sem a franqueza dos amigos, e quase-amantes, mas sem aquele esfrangalhar de corpos e almas a que se dedicam os amantes. Foram-se, enfim, quedando pelo pouco, quase lá e quase nada, à beirinha de um Amor e de uma Verdade desperdiçados, que atiraram estupidamente ao ar para quem viesse atrás e os quisesse apanhar.

tão gira a neve!

por Vieira do Mar, em 01.02.06
Hipermercado, avio do mês (palavra gira, esta: avio), muitos congelados da Iglo, que cá em casa somos cinco e isso da alimentação natural e biológica colhida de véspera e cozinhada nas vinte e quatro horas seguintes é muito bom quando se vive sozinho e se tem narta suficiente para dar cinco aéreos por três cenouras tortas, que nem para uma sopinha dão... Bom, mas dizia eu ( já me perdi) que chego a casa cheia de sacos, os dedos roxos do peso, com tudo a descongelar (que aquela coisa de serem térmicos é uma ganda treta), os robalos selvagens (apesar de tudo, ainda não cedi à aquicultura...) a pingarem para os bifes da vazia de origem controlada, os douradinhos a derreterem-se para cima dos danoninhos, as pommes noisette a esbodegarem-se por sobre os nuggets de frango... o desespero, enfim.

Abro o congelador (o meu frigorífico é daqueles combinados, congelador mínimo em cima) e o que vejo? Três enormes bolas de neve (de gelo, portanto), cada uma, pertença de cada um dos meus filhos, com etiquetas de papel coladas ou lá o que é, nas quais, supostamente, constariam os respectivos nomes para não haver confusões (afinal, cada uma detém as suas especificidades e difere na essência e na forma, das outras duas, que isto das bolas de neve tem muito que se lhe diga).
Esta minha cabeça de mãe-dona-de-casa-trabalhadora-escrava-da-família-e-do-chefe-que-a-
azucrinam-diariamente, nem se dá ao trabalho de engendrar um qualquer plano maquiavélico como, sei lá, aproveitar sub-repticiamente as bolas para uns gins ou uns martinis, por exemplo. É para o lixo e é já, que se me começam a escorrer liquídos nojentos pela cozinha fora...

É claro que fui apanhada em flagrante delito enquanto me livrava da primeira bola, que descongelava no lava-loiça. De imediato, fui rodeada por três nativos selvagens que me manietaram psicologicamente e me impediram de alcançar os meus tenebrosos objectivos. Como resultado, o jantar foi assim uma espécie de bodas de Canaã, pois tivemos que cozinhar e comer uma data de coisas que descongelaram entretanto; já o resto da noite foi de guerra aberta, dado que cada um dos indígenas renegava a propriedade da bola entretanto derretida, pois a etiqueta (?!) desfeita com o suposto nome do proprietário não permitia identificar o mesmo.

O que significa que continuo com a capacidade do congelador reduzida a um terço, acrescida de lutas diárias pela posse da merda dos dois pedaços de gelo sujo, vindos da rua sabe-se lá de onde, que todos querem ter mas nenhum quer pegar.


(e eu, que ficara tão contentinha com a neve... totó, claro, para não variar)

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