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Ele não sabia como lhe dizer que já não aguentava o estarem separados, o não se tocarem e não se verem, o comunicarem-se por interpostos e nos intervalos, através de sinalética intermitente. Tinha gasto as teclas dos telégrafos, dos telefones fixos sem mensalidade e o saldo dos telemóveis sem carregamentos obrigatórios, enviado os pombos-correio de todos os pombais à face da terra e escrito em pedaços de papel com margem e sem margem as mensagens possíveis, as quais enrolara gargalo abaixo de muitas garrafas que atirara ao mar de sargaços que os separava; tinha esgotado os gigas que as caixas de correio electrónicas, generosas, haviam posto ao seu dispor, vogado através das ondas de rádio, usado a energia espírita e os poderes telequinéticos que cozinhara à pressa, no vapor do desejo.
Chegara-lhe, a ela, por murmúrios, em braille, escrito em mil tipos de letra, font mistral arial garamond, tinha-lhe dado música em emepêtrês escolhidos a dedo, letras precisas de mira telescópica, feitas para apontar e irem directasao coração... e ela, longe, lá longe. Tinha-se couraçado de rodeios, meias palavras e deixado levar por entusiasmos de sintaxe, metafóricos e hiperbólicos, embora sem nunca lhe ter efectivamente chegado a dizer amo-te. Sabia quanto pareceria ridículo e lhe soaria a ela a despropósito, a desabafo kitsch, a noivos de santo antónio, novela das sete, rodapé do programa do Goucha, amo-te Sónia, és a mulher da minha vida, Marco, a correio sentimental da revista Maria, a suspiros de doméstica chorosa e de reformada nostálgica; ele, convicto, achava que já não tinha idade para as tremuras quentes, a inconsistência e o desejo gelatinoso e adolescente que, ultimamente, o tomava de assalto pela calada da noite, a meio de uma reunião, quando acordava e punha os pés no chão, enquanto lavava os dentes, assinava uma acta, consultava o saldo no multibanco, beijava a mulher ou estacionava o carro (ele sabia, sabia tudo isso).
Deixara sempre o mais importante por dizer, porque, para além do medo de que fosse verdade, aquela declaração pastiche que teimava em assomar-lhe aos dedos e à boca, temia a reacção dela a essa declaração, o retraimento e a fuga em frente; por isso acabava quase sempre com juras de amizade eterna e desinteressada, despojada de romantismos que obviamente soariam bacocos a ambos, abafando com camadas racionais o som dos violinos ao longe e os votos de paixão que trazia à superfície da pele e queria esfoliar para cima dela, em apanhando-a desprevenida.
Escrevera e dissera muito, tanta coisa!, mas, afinal, ela nunca se dispusera a ler-lhe o amor nas entrelinhas, queria-o escarrapachado à sua frente e alardeado aos sete ventos, pelo que, feitas as contas, tempos depois, foi como se tivesse ficado calado, noves fora, nada.