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por Vieira do Mar, em 23.12.05
silent nightChegou de mansinho, em bicos de pés; espreitou para dentro e remexeu-lhe o interior, como quem procura uma meia perdida num cesto de roupa; tirou-lhe os segredos para fora e espalhou-os no chão frio da cozinha, virou tudo do avesso a ver se encontrava o que queria, que era muito, quase tudo, embora menos que nada: uma ou duas chaves, que lhe dessem entrada VIP em jardins secretos a meio da noite, palavras entretecidas nos fios de algodão de uma camisola com nódoas e meia dúzia de sentimentos fiados a roca, enrolados em camisas suadas. Encontrou um fio de conversa e guardou-o, com cuidado. Enfiou-lhe a mão nos bolsos das calças enrodilhadas e despejou-lhe, no côncavo solitário do lavatório de pedra, contas de restaurante, amores antigos, um pacote de açúcar, bilhetes de metro, frases perdidas e traumas de infância. Lá bem no fundo do forro de seda, roto e amachucado, descobriu-lhe um botão, vinte cêntimos, meio maço de tabaco e uma expressão de espanto; passou-lhe os dedos pela borda dos colarinhos, em busca de rugosidades e hesitações; pegou-lhe na roupa interior e absorveu-lhe os cheiros, sentindo a textura das fibras sintéticas e a tessitura de toques antigos. Revolveu tudo o que estava ao seu alcance, farejou, procurou, embebeu-se. Nunca se ficaria por menos, sempre assim fora: onde quer que chegasse e em quem quer que entrasse, virava caixas, invólucros e recipientes do avesso, aspirava para dentro de si todos os conteúdos, as bolas de cotão, as lágrimas e os voos de borboleta (que depois regurgitava) e só descansava quando olhava em frente e via tudo desemparelhado, baralhado e espalhado. Ao comprido.