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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

...

por Vieira do Mar, em 08.12.05
conto de natal



Cansada, os dedos dos pés estrangulados num antipático par de botas, rendeu-se ao cansaço e encostou-se ao balcão da loja de brinquedos, balançando o papel que tinha na mão, santo e senha para mais meia dúzia de símbolos empacotados made in spain de formas de escravidão da classe média adulta: um fogão de cozinha, um balcão de loja, uma bancada de oficina, um salão de beleza, filho és pai serás. No abandono resignado do encosto, sentiu que tocava em alguém que, por sua vez, também se deixava ir na fadiga de mais uma sessão de compras e tombava o corpo para o mesmo lado da estrutura contraplacada.

Despertando do marasmo meio dorido a que se abandonara por segundos, endireitou-se de um pulo e, enquanto cozinhava a desculpa cortês da praxe,voltou-se para ele.
Reconheceram-se, mas não logo: no primeiro milésimo de segundo nem se viram, até porque nenhum estava na verdade ali, na manhã de uma véspera de Natal cercado pela fúria consumista de uma turba sem sonhos, de mão no ar e à espera da misericórdia de um empregado que lhes traria, embalada, a alegria em diferido dos respectivos rebentos, filhos de outros amores. Aquele encontro estava, portanto, predestinado a ser pouco mais do que um anacronismo, um parágrafo que o autor da história se devia apressar a apagar. Mas não apagou e eles ali continuaram, com o pânico por momentos pespegado ns olhos do outro, na boca do outro, nas rugas sobrevindas do outro.

Instalou-se-lhes uma dúvida mútua, como deveriam tratar-se? Talvez com uma raiva polida que, de qualquer modo, seria sempre fingida. A despedida, anos antes, não fora das mais cordatas mas, na bruma dos tempos que se lhe seguiram, tanto se haviam arrojado mutuamente, arrancado cabelos e engolido sapos, agoniados com o novo silêncio e a nova vida do outro, que lhes restara pouco mais do que farrapos (embora fundos e incrustados) de memórias. A passagem balsâmica do tempo diluíra-lhes o ódio e as cores deste, outrora berrantes, havia esmaecido como as de um fresco antigo por restaurar.De algum modo, haviam conseguido enxertar este amor distante e à distância, nos outros entretanto surgidos, revivendo-o entre uma ida ao colégio ou ao dentista, uma reunião importante ou uma manhã no hipermercado, numa espécie de masturbação solitária e quase feliz, como quem se vem com os cinco sentidos presos ao holograma de um rosto antigo, deixa-me fechar os olhos e fingir que te tenho aqui.

Em assim sendo, mortos e enterrados os relambórios finais daquele amor partido em cacos e despejado no lixo a pazadas rápidas, permitiram-se um sorriso. Sincero e sentido, porque se tinham tocado e misturado calores e odores (pronto, já cá tenho o teu cheiro) ao som de um gingle interminável que lhes cantava como era engraçado viajar num trenó aberto de um só cavalo, alheios ao ramerame dos casalinhos de fim-de-semana (muitos, seguramente, tocando-se na cama com intensidade inferior àqueles encosto de ombros e bebedeira de hálitos), ocupados em acumular dívidas e rancores para as décadas seguintes.

Depois da exultação inicial, no entanto, instalou-se a conversa banal, então, estás boa, nas compras?, sim, para os miúdos, quantos tens?, tenho dois, eu tenho uma, uma trabalheira, pois é, mas vale a pena, sim, é muito bom, casado?, separada?, que idades têm?, seis e oito, cinco, moras em Lisboa?, nos arredores, trabalho num banco, eu estou em casa, sabes como é, miúdos pequenos, esta loja é péssima, demoram horas a entregar as coisas, não achas? queres tomar um café, não posso, o meu marido está ali à espera, ah, claro, bom, mas se quiseres, um dia destes..., combinado.

E lá foram ficando na irrelevância das palavras, dois amantes pistoleiros numa vilória poeirenta do faroeste suburbano, num frente a frente de tudo ou nada, que se amariam sempre, por muito que amassem outros por mais tempo e ainda mais do que um ao outro. Naquele dia, por um acaso da sorte ou do azar, haviam-se exalado de novo, desprovidos de outra emoção que não a do prazer do reencontro. Quando o empregado finalmente chegou com os respectivos pacotes, despediram-se com dois beijos na cara, prolongaram o toque de pele até ao limite do socialmente correcto e separaram-se cada um para seu lado, pois tinham os carros em cantos opostos do parque de estacionamento. Atiraram os embrulhos com desnecessário descuido para o fundo da bagageira e agarraram com força a ideia que cada um fizera do seu Natal, com outros amores nas casas novas, devidamente enfeitadas e dotadas de modernos sistemas de aquecimento central que dispensavam lareiras. Agarraram-na com força, a essa ideia confortável de perfeição e guardaram-na no bolso dos respectivos casacos, como um pedaço de plasticina frio e por moldar, porque, depois daquele encontro e nos minutos (ou nas horas, talvez dias) que se lhe seguiram, haviam ficado sem saber que raio de formato haveriam de dar-lhe, ao Natal que tinham pela frente.

Quanto a iluminação, não obstante, estavam aviados: dentro deles, havia-se acendido uma fiada de luzes de exterior inteira, daquelas com trezentas lâmpadas, mil watts, várias cores em múltiplas combinações e oito melodias, embora sem transformador nem caixa de água e sujeita, por isso, a um monumental curto-circuito em caso de intempérie súbita.

no carro (II)

por Vieira do Mar, em 08.12.05
Ele, o tal dez reis de gente com cinco anos: Mãe, vamos fazer um concurso de palavras acabadas em ão?

Eu: Vamos!

Ele: Cão!

Eu. Pão!

Ele. Coração!

Eu: Camião!

Ele: Mão!

Eu: Tostão!

Ele: Chão!

Eu: Perdão!

Ele: Cabrão!

(...)

End of Game.

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