Chegou de mansinho, em bicos de pés; espreitou para dentro e remexeu-lhe o interior, como quem procura uma meia perdida num cesto de roupa; tirou-lhe os segredos para fora e espalhou-os no chão frio da cozinha, virou tudo do avesso a ver se encontrava o que queria, que era muito, quase tudo, embora menos que nada: uma ou duas chaves, que lhe dessem entrada VIP em jardins secretos a meio da noite, palavras entretecidas nos fios de algodão de uma camisola com nódoas e meia dúzia de sentimentos fiados a roca, enrolados em camisas suadas. Encontrou um fio de conversa e guardou-o, com cuidado. Enfiou-lhe a mão nos bolsos das calças enrodilhadas e despejou-lhe, no côncavo solitário do lavatório de pedra, contas de restaurante, amores antigos, um pacote de açúcar, bilhetes de metro, frases perdidas e traumas de infância. Lá bem no fundo do forro de seda, roto e amachucado, descobriu-lhe um botão, vinte cêntimos, meio maço de tabaco e uma expressão de espanto; passou-lhe os dedos pela borda dos colarinhos, em busca de rugosidades e hesitações; pegou-lhe na roupa interior e absorveu-lhe os cheiros, sentindo a textura das fibras sintéticas e a tessitura de toques antigos. Revolveu tudo o que estava ao seu alcance, farejou, procurou, embebeu-se. Nunca se ficaria por menos, sempre assim fora: onde quer que chegasse e em quem quer que entrasse, virava caixas, invólucros e recipientes do avesso, aspirava para dentro de si todos os conteúdos, as bolas de cotão, as lágrimas e os voos de borboleta (que depois regurgitava) e só descansava quando olhava em frente e via tudo desemparelhado, baralhado e espalhado. Ao comprido.
Que penso assim, não é novidade nenhuma: momentos de separação entre filhos e pais, são fundamentais para todos. É bom que eles por vezes fiquem com primos, tias e avós, que conheçam as suas pequenas idiossincrasias e taras menores, que entrem noutras rotinas (e que percebam que se podem fartar, não apenas dos pais, mas de terceiros, para depois concluírem que os pais não são assim tão maus como isso...he he). E, depois, há coisas de avós e de tios: os avós e os tios estragam os netos e os sobrinhos, permitem-lhes liberdades inusitadas, levam-nos a sítios diferentes, contam-lhes outras histórias, ensinam-lhes brincadeiras novas, cozinham ovinhos mexidos à meia-noite e preparam leitinhos com chocolate às três da manhã, não obrigam a tomar banho, fazem tranças e risco ao lado, e levam os meninos à praça e ao teatro. No entretanto, os pais aproveitam para namorar, conversar e viajar (de preferência, tudo ao mesmo tempo em fins-de-semana prolongados).E é aqui que tudo se complica.
O planeamento propriamente dito é sempre uma excitação: vamos para aqui, não!, vamos antes para acoli; esta cidade conhecemos, mas não vimos o não sei das quantas, ah! e com neve deve ser linda... e christmas markets, vamos a uma que tenha muitos christmas markets!, não preferes um sítio mais quente? tropical? não, vamos para a neve.. .. Enfim, atingido que seja o consenso, feitas as reservas e as malas de todos, lá deixamos os miúdos com os familiares respectivos. Em arrancando de manhã cedo, isto tem lugar no dia anterior. No momento das beijocas do adeus, já o estômago se me começa a enrolar tipo jibóia refastelada a digerir um gabiru. Adeus, meus queridos, portem-se bem, ó mãe, podemos ir com vocês, então, já falámos sobre isso, vocês gostam taaaanto de ficar com os avós, vá, adeus, adeus...! PUM!
Fecha-se a porta e o coração começa-se-me a mirrar como se o estivessem a embalar a vácuo. Nessa noite, como ainda estamos cá e eles ali ao lado, meia dúzia de ruas abaixo, a coisa escapa: acordo bem-disposta e cheia de energia, estado que se mantém no caminho para o aeroporto. balcão 27, check in, porta 13, embarque, não fumadores, coxia, fasten seat belts, pastilha elástica para os ouvidos e, no momento da descolagem, invade-me por fim uma angústia da separação tão grande, mas tãaaao grande, e uma vontade tão colossal de inverter a marcha daquela merda, afocinhar com o avião no chão e correr a resgatar os meus meninos das garras dos avós, que se torna mais agradável ir ao lado de um bombista suicida prestes a mergulhar de cabeça em setenta e duas virgens, do que ao meu.
Na primeira meia hora de voo, suspiro, fungo, arrependo-me, choro que me farto e gasto uma caixa de kleenexes; quando chega a comida, lá me distraio com o salmão fumado e as tristes vagens verdes que não como, procurando pelo meio qualquer coisa que saiba a chocolate. Chegadinhos que somos, pronto: é uma festa, os dias passam a voar, compro lembranças, escrevo postais, envio sms e mails e instala-se em mim uma saudade alegre e mansa; não raro, quando faço as malas no regresso, concluo que me soube a pouco e que, afinal, ainda me aguentava mais uns dois ou três diazinhos, na boa.
Nada a fazer: não obstante estar careca de saber como são e onde me levam, as minhas contradições de mãe seguem invariavelmente o mesmo padrão, ano após ano, filho após filho.
Tinham muitas coisas em comum: um cão, uma mangueira de jardim, um puto ranhoso, a trela do cão. Não que se entendessem por aí além, mas penhoravam-se mutuamente e juravam-se pelas alminhas, a cada muda de fralda e aparo de relva. Entretanto, o puto cresceu, passou a assoar-se e a controlar os esfíncteres e a fé diminuiu-se-lhes: deixaram-se de mãos no fogo e passaram a talvez quem sabe, não posso garantir nada. Para piorar, um dia, ela perdeu a trela, o cão roeu a mangueira e a relva amarelou, à conta de uma geada que lhes caiu em cima e lhes borrou a pintura sem a devida licença (que se queria em papel timbrado de três vias.
Pouco depois, e estavam a viver de fotografias: recordações desbotadas de baba e ranho, de aparelhos de rega e de ossos entre dentes, a um passo do descrédito.Tempos volvidos e já não se jogavam nem a feijões, não se apostavam numa rifa, sequer,entre mil, pois tinham a certeza de (se) perderem e de não terem como pagar, endividados que estavam para consigo mesmos por toda a eternidade. Para compensar, ela arranjou um gato, ele arranjou-se como pode (ou terá sido o contrário?).
No seguimento de uma bica escaldada (a bica, não o gato, que até gostava de água fria) morreram por fim afogados, culpa toda de um cansaço que os venceu, depois de anos em que se haviam mantido à tona de vagas gigantescas de rancores salgados, daquelas muito boas para a prática de surf a dois.
Acabaram comidos pelos peixinhos, lamentando-se por terem perdido tanto tempo terrestre a limpar rabos, passear cães e aparar relva, e por terem fodido tão pouco. Tantas mãos no fogo um pelo outro e tão poucas mãos em fogo um no outro. Enfim, quase esqueletos no fundo do mar e ainda lhes saía o trocadilho, e dos bons! Nem tudo é mau, pensou ele, enquanto um caboz lhe chupava o olho direito, que faiscava raivoso em direcção ao maxilar meio descarnado dela, por sua vez escancarado numa expressão de gozo e já meio soterrado no leito oceânico das cínicas virtudes.
Escusado será dizer que, na senda de neptuno (mas sem a respectiva dignidade divina), se atiram raios e coriscos para todo o sempre a vários metros de profundidade, no esconjuro eterno da maldição conjugal.
Cansada, os dedos dos pés estrangulados num antipático par de botas, rendeu-se ao cansaço e encostou-se ao balcão da loja de brinquedos, balançando o papel que tinha na mão, santo e senha para mais meia dúzia de símbolos empacotados made in spain de formas de escravidão da classe média adulta: um fogão de cozinha, um balcão de loja, uma bancada de oficina, um salão de beleza, filho és pai serás. No abandono resignado do encosto, sentiu que tocava em alguém que, por sua vez, também se deixava ir na fadiga de mais uma sessão de compras e tombava o corpo para o mesmo lado da estrutura contraplacada.
Despertando do marasmo meio dorido a que se abandonara por segundos, endireitou-se de um pulo e, enquanto cozinhava a desculpa cortês da praxe,voltou-se para ele. Reconheceram-se, mas não logo: no primeiro milésimo de segundo nem se viram, até porque nenhum estava na verdade ali, na manhã de uma véspera de Natal cercado pela fúria consumista de uma turba sem sonhos, de mão no ar e à espera da misericórdia de um empregado que lhes traria, embalada, a alegria em diferido dos respectivos rebentos, filhos de outros amores. Aquele encontro estava, portanto, predestinado a ser pouco mais do que um anacronismo, um parágrafo que o autor da história se devia apressar a apagar. Mas não apagou e eles ali continuaram, com o pânico por momentos pespegado ns olhos do outro, na boca do outro, nas rugas sobrevindas do outro.
Instalou-se-lhes uma dúvida mútua, como deveriam tratar-se? Talvez com uma raiva polida que, de qualquer modo, seria sempre fingida. A despedida, anos antes, não fora das mais cordatas mas, na bruma dos tempos que se lhe seguiram, tanto se haviam arrojado mutuamente, arrancado cabelos e engolido sapos, agoniados com o novo silêncio e a nova vida do outro, que lhes restara pouco mais do que farrapos (embora fundos e incrustados) de memórias. A passagem balsâmica do tempo diluíra-lhes o ódio e as cores deste, outrora berrantes, havia esmaecido como as de um fresco antigo por restaurar.De algum modo, haviam conseguido enxertar este amor distante e à distância, nos outros entretanto surgidos, revivendo-o entre uma ida ao colégio ou ao dentista, uma reunião importante ou uma manhã no hipermercado, numa espécie de masturbação solitária e quase feliz, como quem se vem com os cinco sentidos presos ao holograma de um rosto antigo, deixa-me fechar os olhos e fingir que te tenho aqui.
Em assim sendo, mortos e enterrados os relambórios finais daquele amor partido em cacos e despejado no lixo a pazadas rápidas, permitiram-se um sorriso. Sincero e sentido, porque se tinham tocado e misturado calores e odores (pronto, já cá tenho o teu cheiro) ao som de um gingle interminável que lhes cantava como era engraçado viajar num trenó aberto de um só cavalo, alheios ao ramerame dos casalinhos de fim-de-semana (muitos, seguramente, tocando-se na cama com intensidade inferior àqueles encosto de ombros e bebedeira de hálitos), ocupados em acumular dívidas e rancores para as décadas seguintes.
Depois da exultação inicial, no entanto, instalou-se a conversa banal, então, estás boa, nas compras?, sim, para os miúdos, quantos tens?, tenho dois, eu tenho uma, uma trabalheira, pois é, mas vale a pena, sim, é muito bom, casado?, separada?, que idades têm?, seis e oito, cinco, moras em Lisboa?, nos arredores, trabalho num banco, eu estou em casa, sabes como é, miúdos pequenos, esta loja é péssima, demoram horas a entregar as coisas, não achas? queres tomar um café, não posso, o meu marido está ali à espera, ah, claro, bom, mas se quiseres, um dia destes..., combinado.
E lá foram ficando na irrelevância das palavras, dois amantes pistoleiros numa vilória poeirenta do faroeste suburbano, num frente a frente de tudo ou nada, que se amariam sempre, por muito que amassem outros por mais tempo e ainda mais do que um ao outro. Naquele dia, por um acaso da sorte ou do azar, haviam-se exalado de novo, desprovidos de outra emoção que não a do prazer do reencontro. Quando o empregado finalmente chegou com os respectivos pacotes, despediram-se com dois beijos na cara, prolongaram o toque de pele até ao limite do socialmente correcto e separaram-se cada um para seu lado, pois tinham os carros em cantos opostos do parque de estacionamento. Atiraram os embrulhos com desnecessário descuido para o fundo da bagageira e agarraram com força a ideia que cada um fizera do seu Natal, com outros amores nas casas novas, devidamente enfeitadas e dotadas de modernos sistemas de aquecimento central que dispensavam lareiras. Agarraram-na com força, a essa ideia confortável de perfeição e guardaram-na no bolso dos respectivos casacos, como um pedaço de plasticina frio e por moldar, porque, depois daquele encontro e nos minutos (ou nas horas, talvez dias) que se lhe seguiram, haviam ficado sem saber que raio de formato haveriam de dar-lhe, ao Natal que tinham pela frente.
Quanto a iluminação, não obstante, estavam aviados: dentro deles, havia-se acendido uma fiada de luzes de exterior inteira, daquelas com trezentas lâmpadas, mil watts, várias cores em múltiplas combinações e oito melodias, embora sem transformador nem caixa de água e sujeita, por isso, a um monumental curto-circuito em caso de intempérie súbita.
Isto das decorações de Natal como forma de celebração do espírito da Família, there´s a season to be jolly, lalalalalalalala..., tem que se lhe diga. Começa tudo imbuído daquele espírito maravilhoso de sermos uma comunidadezinha fortificada pelo amor, pela alegria e por outras utopias que tais, e toca de enviar o entusiasmo inicial à garagem e mandá-lo trazer os pacotes todos para cima. A princípio, a malta ajuda e participa: pega daqui, escorrega dali, empurra dacolá, até ao elevador e, se preciso for, até ao infinito e mais além. Ao entrarmos em casa, já os bofes estão assim um bocadinho como que mais para fora do que para dentro, que a árvore é artificial e pesada, os enfeites são muitos, os anjinhos são de gesso, as bolas, de vidro, e os pais natal, de madeira.
Colo a cuspo as vontades, que começam a dispersar-se à primeira imagem dos morangos: vá lá, meninos, bora aí fazer isto, o que ajudar mais põe a estrela lá no cimo (estranhamente, esgatanham-se, por este privilégio final) e lá consigo arrastá-los para a montagem da coisa propriamente dita.
Ora bem, abrir as ramagens de uma árvore de natal de metro e setenta com a consistência de um abeto adulto dos apeninos, é tarefa, no mínimo, chata como a potassa: raminho a raminho, abre e puxa, abre e puxa, até ficar tudo redondinho e com o formato devido, que é parecer o mais natural possível. Por esta altura, quase sempre valores mais altos se levantam, normalmente, uns providenciais trabalhos de casa que haviam ficado esquecidos na bruma dos tempos. E lá me desaparecem eles para os respectivos quartos, fingindo semblante responsável. Quando acham que aqui a moira já abriu e puxou todos os fucking raminhos da puta da arvorezinha, aparecem alegremente na sala, de volta ao convívio natalício-familiar.
Então e agora, mãe? Agora é pôr as luzes, mas primeiro temos de as desenrolar. E lá está: desenrolar as luzes (mal enroladas e à pressa no fim do Natal anterior) é uma graaaande maçada. As lâmpadas prendem-se umas nas outras, metade estão partidas e eu nunca me lembro de as ligar antes de as envolver na árvore; depois, quando constato que estão fundidas, tenho que as desenrolar, enquanto a minha língua desenrola em murmúrio (era bom, era) meia dúzia de asneiras, pouco condizentes com a quadra e com o momento, que se quer de alegria e paz.
Ultrapassado o pseudo-drama da iluminação, chega a altura dos enfeites. Aberta a caixinha das surpresas, três narizes mais ou menos curiosos (mais menos, do que mais, que o Zé Milho está a dar uma aula de hip hop), e começa finalmente a decoração a quatro.
Estranhamente, com tanta bola, estrela, anjinho e guirlanda, de todas as cores, tamanhos e feitios, cada um deles só quer o que os outros têm, dando-se então início à sinfonia do eu vi primeiro e dá cá isso, meu ganda troll. Os primeiros cinco minutos, são passados a disputar o direito à posse de uma bola encarnada (sendo que existem mais dez iguais); os outros cinco, o direito a uma estrela dourada (de que há mais seis) e por aí fora, até ao desmoronar completo da fraternidade natalícia e da minha paciência - que é o momento em que se escolhe qual deles porá a estrela branca (esta sim: única) no topo da árvore.
Por esta altura, já as minhas adoráveis crianças esgotaram o léxico de injúrias e ameaças aprendido no recreio da escola, acrescentaram mais umas de sua própria lavra, ensaiaram alguns tabefes e beliscões uns nos outros, e eu já os expulsei dali para fora. Com indisfarçável alívio, acabo por compor os finalmentes em agradável solidão. Chamo-os, então (não tenho safa possível) para o momento da estrela branca: o vencedor é tirado à sorte, os outros dois, perdedores, fazem juras de ressentimento eterno e congeminam a aplicação de um ou dois cascudos no fanfarrão, na ausência dos adultos.
Nos dias seguintes, perguntados que são sobre a árvore de natal, prevalece unanimemente a versão oficial: foram eles que alancaram com a dita escada acima, foram eles que a montaram e eles que a enfeitaram. O pai, esse traidor, corrobora. Eu, basicamente, ter-me-ei limitado a supervisionar a operação. Ou nem isso: se formos a ver bem, nem lá estive. E eu não os desminto.
Todos os anos, por esta altura, a sensação de ser uma ganda-mega-major-mãe-totó-comida-por-todos-os-lados-menos-pelo-lado-que-liga-ao-continente, agrava-se.
Estás aí, sei que estás aí: porque disfarças e desconversas e assobias marchas e hinos para o ar, como quem não quer a coisa, se eu sei que és tu, esse ser ínfimo de olhar esquivo, fato cinzento de mau corte e expressão rubicunda, que se esconde atrás das centenas de arquivos amontoados, onde guarda a informação catalogada sobre mim. Sei que vives para relativamente pouco: para me releres os pontos finais, subentenderes frases simples de direcção única e para me dissecares as palavras, as horas e a anarquia dos meus rituais, debaixo de uma luz potente de halogéneo, das que alumiam um estádio inteiro. Fica aí, fica, de nariz colado ao ecrã, feito lupa de aumentar, a rasgares os meus céus com os teus olhos de radar, em busca de um sinal da minha loucura, do meu perdão, do meu esquecimento, do meu jantar de ontem ou da copa do meu soutiã (que gostarias que fossem os teus dedos abertos).Estás à vontade: usa os teus contactos privilegiados, cobra favores, promete mundo e fundos; pespega-te ao que escrevo como um fóssil jurássico, bebe os programas que vejo, os livros que leio, as músicas de que gosto, aproxima-te mais e mais e depois afasta-te, que isto queima e eu mordo; são dois à bailarina, três à tesoura, quatro à caranguejo, quantos queres?, afinal, o rei manda e o rei és tu, não querias mais nada, rei das tatuagens laváveis, das mal-amadas que suspiram por um émulo teu, dos espiões imperfeitos, dos amanuenses, dos coleccionadores de borboletas e dos condóminos do prédio em frente, que não têm janela indiscreta. Não passas de uma máscara, com pretensões a imiscuir-se nas glândulas sebáceas alheias e eu, em querendo, basta-me esfoliar-te com energia, mas, afinal, é Natal, e a caridade também se mede por aqui, portanto, podes ficar, que eu deixo. Passeia-te, pisa-me as palavras com as tuas botas cardadas de soldado-vigia, marca-me o ritmo das frases com o passo do teu andar, enjaulado e nervoso. Fica, que eu deixo, é época de perdão, apesar dessa tua estranha mania de, com meia dúzia de palavras calculadas, encantares os incautos e construíres barreiras de estrada com que provocas desastres de automóvel no gelo. Aposto que cortas meticulosamente as unhas e sacodes com asco cada grão de pó que se te deposita no colarinho. Pois fica sabendo (nunca o escrevi aqui) que às vezes deixo crescer as minhas como garras e depois pinto-as de roxo e roo-as até ao sabugo, num ataque de fúria ou saudade; e que deixo que o pó se me cole à entrada das narinas, pois não espreito o cimo dos armários; e que acarinho os ácaros e nunca espirrei alergias mas, se um dia tal me acontecer, serás o primeiro a saber, prometo avisar-to por mail: enviar-te-ei o ranho e os perdigotos em ficheiro anexo. E digo-te mais: que me rodeio de camadas e camadas de pó, onde escrevo letras ao acaso com as pontas dos dedos, tentando em vão formar palavras com o teu nome dentro.