Caixas de sapatos furadas, uma dúzia de larvas simpáticas e tudo às cavalitas uns dos outros à cata das folhas de amoreira mais altas e mais tenras, pelos jardins de Lisboa fora. Depois, a parte nojenta ou lá-se-vai-a-poesia: as minhocas que fogem da caixa, os casulos que se espalham pelos rodapés da casa e, last but not least, as horrendas borboletas que surgem subitamente de nenhures, esvoaçando resolutas na minha direcção, até à aniquilação final (a delas, claro).
Folgo em saber que, não obstante o advento dos gameboys e das playstations, há coisas que nunca mudam.
Hoje em dia, quase todos os miúdos saem da pré com noções básicas sobre números, sabendo fazer adições simples e até subtracções. Só que a compreensão do que é o número ou a unidade arrasta consigo uma consequência chata: a incompreensão do conceito de infinito. Porque, para um puto de cinco anos, preso aos limites da sua realidade imediata, é impossível conceber algo que nunca acaba. Por mais que lhes expliquemos, o infinito não passa de um número muito, muito grande, enorme, do comprimento de uma cobra gigante ou de um novelo de lã desenrolado. Mal de mim, que ultimamente sou encurralada por infinitos aos milhares, como se fossem pequenos gremlins. No supermercado, no carro, à saída da escola, a meio do jantar, durante a lavagem dos dentes e no xixi a meio da noite. Posso mesmo dizer que sou uma ilha de ignorância, rodeada de infinitos por todos os lados. Mãe, quanto é que é um infinito? Qual é o número maior que o infinito? Quantos zeros tem o infinito? Onde é que acaba o infinito? Quanto é que é infinito mais três? Como é que se escreve o infinito? A minha resposta é invariavelmente pobre, paupérrima. É a resposta de alguém que guarda contra a matemática o enorme rancor de lhe ter barrado para sempre a vocação natural de arquitecta e de a ter atirado para os braços frios e bafientos da Lei. João, o infinito não é um número; é mais a ideia de que os números nunca acabam, de que a seguir a um vem sempre outro maior e que podes sempre acrescentar mais um e mais um e mais um, que nunca existe um último número. O infinito é a possibilidade de os números ficarem sempre cada vez maiores sem nunca terem um fim, entendes ? Olhar de esguelha. Confuso, de quase desdém. Mas como é que se escreve isso, mãe? Quantos números leva? É do tamanho deste prédio? Ah!; não é fácil, a fase do infinito. Mesmo nada.
*grito de guerra do famoso astronauta Buzz Lightyear, do Comando Estelar (óbvio).
em que as angústias do dia se aglomeram e empurram à porta do sono; em que os medos se roçam desavergonhada e pornograficamente no subconsciente e ganham rostos e nomes vários. Há noites assim, em que saltitamos da vigília ao pesadelo como se jogássemos à macaca no recreio da escola, em que eles nos desaparecem e se aleijam, nos fogem e de repente já lá estão outra vez, à nossa frente, num cenário improvável. Primeiro o mais pequeno, depois o do meio, agora a mais velha, algo de mau lhes aconteceu, estão longe, querem-lhes mal, alguém, e eu não lhes chego (como não chegava à minha mãe nos meus sonhos, quando era pequena). Há noites assim, em que eu chamo a minha filha e ela ignora-me a dor, em que partem os três para outros lados e eu fico só em território desconhecido e inimigo, pregada a um chão que não vejo. Há noites assim, em que acordo com a angústia de que o mal espreita e de que tenho de os proteger, hoje quero ir com eles para a escola, desdobrar-me em três, clonar-me, sentar-me ao lado de cada um na sala de aula, no refeitório e, na ginástica e no recreio, ser-lhes guarda-costas e guarda-frentes.
Ah, porra! Que às vezes me sinto tão frágil, tão pouco mãe-torre, torreão, bastião, e tanto - mas tanto! - ou mais, muralha medieval que se vai com um simples sopro sonhado de lobo mau. Ah, porra.
- Joãozinho, não estou a gostar da maneira como te andas a portar. És mal-educado para as outras pessoas, viras-lhes as costas quando elas te falam, não respondes quando te dizem olá, amuas por tudo e por nada. Não podes fazer isso, é muito feio. Quando eu ou alguém falamos contigo, não te vais embora nem bates com a porta, ouviste? E agora fica aí um bocadinho a pensar no que te disse e vais ver que eu tenho razão.
(eu saio, ele fica sentado no sofá, emburrado, a fingir que vê televisão. Passados cinco, dez minutos, vai ter comigo)
- Mãe, posso falar contigo? Quero dizer-te uma coisa.
- Sim, claro, Joãozinho, diz: o que é?
- Era só para te dizer que NÃO fiquei a pensar no que tu disseste.