voltando à vaca fria
Lendo a blogoesfera, temos por um lado os que acham que aquilo foi um arremedo de censura bacoca; por outro, os que acham que a PSP não tinha obviamente a obrigação de conhecer Courbet nem de saber que aquilo é "arte", pelo que a sua intervenção foi, digamos, legítima, pois visou evitar uma espécie de mal maior. Neste último caso, quem assim pensa fá-lo com sobranceria, como se tivesse descoberto a pólvora, demonstrando compreensão para com os pobres pais de Braga, coitados, imaginando-os a taparem os olhos esbugalhados dos Carlinhos e dos Manelinhos que, no remanso domingueiro, foram de repente confrontados com a crueza de um pipi no seu estado natural, tão diferente daqueles rapados a cera das brasileiras das casas de alterne que os papás seguramente frequentam. Coitados destes e coitadinha da PSP, que nunca foi ao Museu D´Orsay e que só tentou conter a calamidade pública que se adivinhava. Estes, os que insinuam ter muito mundo e perceber das coisas, e que vêm o Portugal profundo das suas tocas à Lapa e à Graça com vista para o Tejo, os que acham que Sacavém é outro país, são os que não fazem a mais puta ideia da profunda ignorância e estupidez das polícias da província e do modo como condicionam a vida das populações e de como são um factor efectivo de não-progresso. Mas eu entendo que, quando o mundo se resume à internet e à fnac do Chiado, não se saiba que o país é quase todo ele a periferia de uma enorme província, e que mesmo à beirinha de Lisboa haja milhares de pessoas que não sabem ler. É claro que esta gente vê mal a coisa, mas os outros não a vêem melhor. "Censura" coisa nenhuma; não atribuam à nossa pobre polícia tamanho pathos, por favor! Eu explico. Por cada “ocorrência” a que um polícia assiste, ele levanta um auto que fica arquivado na esquadra respectiva, caso não dê origem a um processo, por exemplo crime ou contra -ordenação. Ora, eu já li muitos autos. Quanto a este, e pelo que vislumbrei da imagem que apareceu na tv, nem sequer o nome do livro apreendido souberam escrever: escreveram "Pornografia", em vez de "Pornocracia" - e para ler uma palavra polissilábica não é preciso ter um curso de história da arte, apenas o ensino básico. Estes pequenos pormenores são reveladores e eu adoraria ter lido todo o auto, de certeza que encontraria verdadeiras pérolas. Como já encontrei nos inúmeros autos das várias polícias que ao longo dos anos me foram passando pelas mãos. Desde o cão perigoso que era de raça “rotguilas” (em vez de rottweiller), à arma do crime, um chicote que, na descrição técnica do graduado de serviço era “tipo piça de boi”, pequenos exemplos da mais rematada ignorância e falta de formação das nossas polícias, a todos os níveis. Como polícias de trânsito que escrevem mal as marcas dos carros que nem sequer conhecem, que não sabem o que é um GPS, que confundem um motociclo com um ciclomotor (distinção fundamental para encaixar num ou noutro tipo de crime, por exemplo) e que dizem “iamaia” referindo-se a uma Yamaha. Isto como profissional, porque depois, como cidadã, tenho o reverso da medalha: polícias que me quiseram prender porque eu disse educadamente que não concordava com a autuação de um pai que estacionara mal para ir, num minuto, entregar o filho bebé à escola num dia de chuva; e que, quando eu lhes perguntei “mas o senhor agente vai lavrar isso em auto?”, me responderam, “Eu não lavro nada que não sou lavrador, sou agente da autoridade!”; polícias que mandam parar um carro novo para lhe testarem os faróis, cegos para os tunners que passam ao lado a acelerarem os carros quitados; que mandam parar uma mãe numa familiar às seis da tarde num bairro residencial movimentado e a obrigam a retirar todas as cadeirinhas, sacos, cobertores e restante parafernália toddler só para lhe verem o triângulo. Tudo dentro da legalidade mas tudo profundamente estúpido, mesquinho, um abuso de poder, do poderzinho pequenino que lhes é conferido para, essencialmente, poderem chatear o cidadão pagante. Gente que não tem a menor noção do que é o serviço público, do que é servir o público. É por isso que acho uma desgraça, que um graduado qualquer que caiu de pára-quedas no centro de Braga, mesmo que (naturalmente) nunca tenha ouvido falar em Courbet, não tenha parado um momento para reflectir, não tenha tentado chegar à fala com o comandante, ou com o comandante do comandante, ou com um MP ou um juiz (sim, eu sei: estão vocês a pensar que não é garantia de upgrade na escala evolutiva, mas quanto mais não seja levaram com um curso superior em cima, mais uma data de estágios, por muito pouco mundo que também tenham), e que, cheio de medinho (porque aquilo foi mais medinho que outra coisa: miúfa, é o que vos digo, de que os paizinhos de Braga partissem logo ali para a ignorância: é que ia livros, ia livreiro, ia clientes, ia cona, ia tudo, que aquela gente do norte não é para brincadeiras… vejam lá quantas portagens eles pagam!). E isso é que é triste - que, perante a ignorância, não tivessem tentado informar-se em vez de fazerem de imediato um juízo de valor que descambou no lapsus calami que foi a troca do nome do livro; e que, perante a ameaça de desacato, tivessem preferido apreender o dito, porque assim acabavam-se os problemas. E é esta gente que nos multa, que nos guarda, que supostamente nos protege, que não sabe lidar com as pessoas nem com as situações, que não sabe nada de nada, que não tem a humildade de se informar e de tentar saber, que se verga perante os mais fortes lá da terra (os pais de braga, os padres, os autarcas), e que faz usualmente disparate quando há qualquer tentativa de exercício da mais normal cidadania por parte dos contribuintes. Esta é a questão, e é isto que é trágico. O resto é barulho das luzes e gente a falar do que não sabe.