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Controversa Maresia

um blogue de Sofia Vieira

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MEC, a comida, e as mulheres e a comida

por Vieira do Mar, em 16.10.08

A Visão de hoje traz uma entrevista muito engraçada com o Miguel Esteves Cardoso. Das palavras do Génio sobressai a imensa alegria que associa ao acto de bem comer. Revi-me no que ele diz (quem não se revê? é esse o dom dos génios), porque se há coisa de que gosto são almoçaradas e jantaradas, apesar de estar cada vez mais exigente com a qualidade dos ingredientes e com a simplicidade e honestidade da sua confecção.

 

Bom, mas dizia eu, que o tema da entrevista deixou-me a pensar numa questão que me é recorrente: a relação que nós mulheres temos com a comida, em especial com a boa comida. Da minha observação dos espécimes no seu habitat natural, resultaram algumas conclusões (cheias de rigor cientifico, já se vê). Então é assim. As mulheres dividem-se essencialmente em dois grupos: as que têm fome e as que não.
 
As que têm fome, por sua vez, subdividem-se em:
 
A pessoana (a que finge que é dor a dor que deveras sente): É a mulher que já nasceu com fome, no entanto, à custa de muita concentração e aldrabice interior, convenceu-se ao longo da vida de que não tem fome coisa nenhuma ou de que, pelo menos, passa bem sem comer, obrigada. No entanto, e porque comer também é um acto social, gosta de afirmar que está cheia de fome, que está esganada, não se importando de o dizer alto e bom som porque é geralmente bastante magra (as gordas não gostam de dizer que estão esfomeadas: cai mal na vizinhança e chama a atenção para o que elas não querem mostrar). Escusado será dizer que, quando a comida lhe chega, debica mais do que come e fica cheia e a abarrotar ao fim de três garfadas. Desde muito cedo, este tipo de mulher aplica a si própria uma espécie de banda gástrica mental com resultados eficazes, embora implique um exercício psicológico permanente e muito rebuscado (são mulheres obrigatoriamente espertas, mas quase sempre com uma cabecinha um bocadinho marada).
A freudiana: É a que tem fome e que a esta sucumbe, intercalando raves gastronómicas com todo o tipo de dietas, com e sem químicos, reincidindo sempre quando estas terminam e, não raro, recuperando rapidamente o peso perdido. É o tipo mais comum: a mulher saudável com tempo a mais entre mãos e supermercados por perto, que come com gosto mas com culpa, flagelando-se pela farinheira do cozido e pela fatia de bolo de chocolate; culpa, essa, que tenta aplacar com o adoçante no café. Pode ou não martirizar-se ainda mais no ginásio, mas, para além de alguma firmeza muscular, não lhe adianta grande coisa, já que fica sempre em débito.
A agostiniana: Apesar da fome, e graças a uma disciplina férrea e a uma força de vontade que resultam seguramente de algum pacto com o demo, consegue conduzir o seu livre arbítrio no sentido de comer só um terço da lasanha, almoçar apenas uma salada e sopa, jantar iogurtes, mergulhar no cheesecake uma vez a cada dois meses, e mesmo assim ser razoavelmente feliz. É aquela mulher que eu, nos meus momentos e lucidez, quero ser quando for grande.
A franciscana: Canaliza a fome que tem para os seitans e os tofus acompanhados por velas de cheiro e mantras budistas na parede, praticando alegremente uma alimentação saudável e livre de proteína animal, e aproveitando assim para se convencer de que meio quilo de arroz integral e uma barra de chocolate sem lactose nem açúcar, não fazem mal nem engordam. Preocupada e consciente, vai ao Pingo Doce à rucola fresca e confecciona saladas coloridas com vários tipos de alface que fazem uma excelente refeição. É quase desprovida de culpa e os quilos que possa ter a mais não os atribui tanto aos hidratos de carbono nos cereais, mas mais ao facto de a caminhada do fim-de-semana ter sido apenas de cinquenta quilómetros, quando deveria ter sido de cem.
 
As que não têm fome, são, fundamentalmente:
 
A modelo/apresentadora/relações públicas de discoteca foleira, que finge que tem fome para parecer feliz e saudável. O procedimento é em tudo idêntico ao da pessoana, com a diferença de que aquela não gosta nem nunca gostou de comer e é por isso magra/magérrima, embora faça questão de dizer em público que adoooora comer, que come de tudo e que o seu prato favorito é feijoada, mas que nunca engorda nem vai ao ginásio, pois já nasceu assim, é genético, tal como a mãe e a avó. Esta, quando a comida lhe chega, tanto lhe faz como lhe fez e ingere apenas o suficiente para se manter de pé, fingindo que o faz com genuíno prazer, para se enquadrar no ambiente.
A  que não finge e que praticamente não come (não arranjei nome para esta, talvez infeliz?). É uma pessoa descompensada, que revela revela secura interior e frustração por não conseguir partilhar com outros um dos grandes prazeres da vida. É geralmente pouco sociável e tristonha, como se vivesse à parte, num permanente estado de dieta, coitada.
 
É claro que, depois, existem todas as outras:
 
As que sofrem de patologias como a anorexia e a bulimia (mas isso é outra conversa); e as que não se enquadram em nenhuma das categorias supra mas onde todas nós, queridas leitoras, achamos que nos inserimos, não é? As normais. Ou seja, as que não são gordas nem excessivamente magras, algures entre o 34 e o 38, e que não correspondem ao ideal anoréctico não obstante se acharem gajas boas; as que têm geralmente cuidado com a alimentação, pelo que passam diariamente um bocadinho de fomeca, embora seja coisa que se aguente; as que comem mais peixe grelhadinho do que bitoques, não obstante cometam um pecadilho aqui e ali, que de imediato compensam com horinhas extra no ginásio ou de jejum; as que, enfim, lidam bem com o apetite saudável que têm, que não as incomoda por aí além, e para quem fazer uma dietazita de vez em quando até contribui para o bem estar mental, ao invés de ficarem com um humor raivoso como seria de esperar...

 

(esta foi a parte da efabulação para efeitos de agradar a todas: assim mais ou menos como meio litro de häagen dazs dulce de leche - vá, admitam...)
 
 Escusado será dizer que, gordas ou magras, quase todas fazem exercício e se acham sempre com quilos a mais que precisam de abater como cães, pois carregam uma imagem distorcida de si próprias (implantada nelas como um chip alienígena) e que lhes é imposta pelos namorados, pelas revistas e pela sociedade em geral. No seu íntimo, levam a sério o frívolo mote “nunca se é rica demais nem magra demais” (os actuais padrões anorécticos de beleza são lixados), pelo que a boa comida nunca deixa de ser uma inimiga declarada, mesmo quando não é uma tentação.

 

De tudo,  retiro pois a seguinte fantástica, inteligentíssima e empírica conclusão: as magras, que gostam do seu corpo (socialmente aceitável), têm geralmente uma má relação com a comida, que desprezam ou fingem desprezar; as gordas, que gostam de comer bem, têm uma má relação com o seu corpo, que só não desprezam porque não podem. As ditas normais,  na sua maioria, oscilam entre uma e outra categoria, pelo que praticamente não existem.
 

(sim: isto é muito complicado, rapazes, acreditem, não tentem perceber...)

 

(agora vou almoçar, que hoje é dia de cozido aqui ao lado; a ver se não me esqueço do comprimidinho com fibras dos naturistas: aquele placebo que, ingefrido antes e com muita água, finge ocupar o espaço  guardado para a morcelinha de arroz...)

 

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