o amor é lindo mas selectivo
Quando Carlos Tê diz que não se ama alguém que não ouve a mesma canção, a coisa não é para ser levada à letra. Podemos amar alguém que gosta de todas as faixas de um cedê do Wim Mertens. E se o amor que sentimos for mesmo profundo, podemos até ouvi-las todas sem adormecer ou vomitar. No fundo, o que acontece é que o amor tem de coincidir nos fundamentais. Eu não consigo amar alguém que não reconheça a genialidade de Chico Buarque. Ou melhor, até consigo, mas apenas com base numa ignorância temporária (minha ou dele). Pode acontecer que não gosta porque não conhece, não calhou, nunca ninguém lhe mostrou, então vamos lá resolver isso. Se mesmo assim a reacção for de indiferença, de tédio ou mesmo de desagrado, então temos um problema. Também nunca amaria quem não gostasse de Eça ou nunca tivesse lido Os Maias. Ou quem jamais se tivesse rido com Herman José. Não achar piada a Herman José, em especial nos seus primeiros anos, é um crime de lesa-amor. É quase como não saber de cor certas crónicas do MEC ou nunca ter lido O Independente e não ter percebido que tudo mudou desde então. Mas o inverso também se verifica. Coisas de que só nós devemos gostar para que se mantenha o respeito. Eu adoro Harry Potter: os livros, a trama, os filmes, a iconografia toda, toda, mas... não me apetece especialmente que ele também e que muito, o que o tornaria um bocado nerd. E não se ama um totó, suportamo-lo com carinho. Por exemplo, pode gostar de música dos anos oitenta, mas só de alguma; não deve saber de cor a letra do girls on film, e muito menos dançá-la com alma nalguma festa revivalista. Deve reconhecer que o Streets of Fire é uma grande malha, e não hesitar quando se fala de U2 ou Police. Está absolutamente proibido de apreciar fado, e muito menos de o trautear distraidamente. Já o nunca ter lido a trilogia do Senhor dos Anéis nos seus anos de formação é de certo modo um revés, mas mesmo assim permite que se prossiga com o amor - e nada de insistir que o faça agora, porque tudo tem o seu tempo e aos quarenta não temos que levar a sério as fornalhas de Mordor (não devemos). Também não se ama alguém que não goste de comer, embora se possa amar quem goste de comidas diferentes. É, aliás especialmente bom quando os gostos neste domínio não coincidem na totalidade mas se completam: tu gostas da coxa, eu do peito do frango. Tu, da parte alta do bacalhau, eu, da posta baixinha. Perfeito. Ainda no domínio do comestível, não se gosta de um homem que não saiba fazer um grelhado com método, paciência e concentração, sem estorricar. Um robalo escalado no ponto certo é uma enorme prova de amor. Também não se ama quem percebe muito de muitas coisas: pode não matar o amor, mas irrita-o. Temos que saber coisas que o outro não sabe para sentir que também o surpreendemos. Senão o amor mirra, envergonhado. Também não é fundamental gostar das mesmas séries e filmes, mas ajuda. Não me importo que goste de filmes de porrada, mas isso porque eu também. Não pode delirar com comédias românticas. Não só porque eu as detesto mas porque seria um bocado gay e o amor tem de ser macho e ter pêlo no peito (pelo menos o meu). Há situações fáceis, como a série Weeds - todos gostam da Nancy Botwin, em especial quando abre as pernas e alguns até gostam genuinamente dos diálogos da série. Não importa: interessa é que, por uma hora, não há guerras de zapping. Nenhum amor sobrevive a frequentes zappings-kamikaze. Há outras coisas interditas, para além do fado. No meu caso, não amo alguém que ame futebol. Aliás, quanto menos um homem perceber do assunto e desprezar resultados e as conversas sopeiras do dia seguinte, mais me fascina. Mas tem de atentar minimamente em europeus e mundiais onde entre Portugal, para também não parecer um alienado - e, pior do que isso, um não patriota. Perdoa-se que não goste de House MD - afinal, uma série de gajas para gajas, como alguém disse; mas aceita-se que veja Desperate Housewifes como quem pudesse estar a ver outra coisa qualquer, olha calhou ficar ali nas quarentonas boazonas, podia ter sido na pesca dos caranguejos. Mas tem que desprezar genuinamente situações que metam vampiros, pois coisa mais gay no mundo dos gays não há. É que é metê-lo logo à porta de malas feitas e com dono, acreditem-me. Ah! E eu só amo um homem que goste de carros, mesmo que não tenha nenhum. Desprezo ligeiramente aqueles para quem é o mesmo conduzir um Opel Corsa e um Porsche Carrera. E que acham que os carros são apenas prolongamentos das pilinhas dos outros - porque as deles, naturalmente, não precisam de quaisquer acréscimos, muito menos de natureza motorizada. Suspeito sempre destas putativas pilinhas pequeninas e ressabiadas que só sabem andar de metro. E, a propósito: não se ama um homem de pilinha pequena, pequenininha, minúscula, pois não nos dá traz qualquer serventia e toda a gente sabe que as mulheres são pessoas práticas de natureza utilitária. Por muito que isto doa (ou melhor dizendo: que não doa nada - não resisti ao trocadilho). E por fim, podemos até amar, mas devemos desconfiar, dos que dizem desabridamente: "a Monica Bellucci não faz o meu género". Se mentem em relação a isto, nunca saberemos até onde estarão dispostos a ir.