conseguida a custo *
... a entrega temporária dos miúdos, encontram-se a meio caminho entre a casa dos avós e o escritório dele. Acorrem sem pressa à bilheteira e aceitam sem reclamar as sobras que a mulher sisuda do lado de lá do vidro lhes impõe. Afinal, é segunda-feira e chegam atrasados, não têm por que se queixar. Dão por eles nos lugares mais escondidos da sala mais recôndita de um megacomplexo recém-inaugurado, enfronhados no pesadelo neurótico-estático de um realizador nórdico muito premiado. Mergulhando os dois as mãos no balde das pipocas, lembram-se daquela vez em que aterraram também de chofre nos delírios onanistas de um outro realizador, este francês (só podia!), o que lhes vale um ataque de riso seguido de um chiuuu! sibilado do outro canto da sala. Parecia que, de cada vez que tentavam fugir, por uma hora que fosse, da esquizofrenia do seu próprio quotidiano, o acaso trocava-lhes as voltas e contemplava-os com a esquizofrenia dos outros, esparramada num ecrã gigante. Não é que achassem aquilo mau, aliás, quem eram eles para criticar o chamado cinema de autor, eles, soberanos incontestados das matinés walt disney presents. Mas fazia-lhes espécie, aquela ausência de ruído das emoções dos personagens, que os obrigava a deitarem-se a adivinhar. Às tantas, algures entre um divórcio e uma tentativa de suicídio filmados em tons sépia, ele sussurra-lhe, o que me apetecia mesmo, mesmo, era um big mac... Ela sacode uma pipoca colada no canto da boca e, sem se dar ao trabalho de fingir-se enjoada com a sugestão, como teria sido politicamente correcto, atira-lhe um sintético, bora!. Enquanto, no ecrã, a neve cai e os personagens se abrigam em monólogos que se pretendem diálogos, eles dão-se as mãos pegajosas, levantam-se e furam sem cerimónia a circunspecta fila, deixando atrás de si um lastro de desculpas não aceites. No corredor e a caminho da porta, por entre fiapos de escuridão e luz, ela arrisca, queres namorar comigo? Ele entra no jogo, está bem mas só esta noite. Acabam empoleirados em dois bancos altos de fórmica, rodeados de putas e chulos, a lamber ketchup dos dedos e a recordar episódios do Seinfeld. Nessa noite, não pediram três happy meal com cheese natura, dois para rapaz, um para rapariga. Mas arrecadaram o brinde.
* dado que me apagaram o controversa no blogspost vou fazer de vez em quando reposts dos meus textos mais antigos.