nunca mais
Ultimamente tenho pensado muito na violência doméstica. Feliz durante anos num casamento relativamente pacífico, que acabou só por causa do fim do amor, a questão sempre me foi estranha, e não foi por lidar com dezenas de casos em tribunal, todos diferentes, que compreendi melhor as nuances dos filmes tenebrosos que se me depararam. Vi muitas mulheres feitas num oito caírem nos braços dos agressores e desistirem das queixas (quando tal ainda era possível), negando tudo o que haviam jurado, contrariando resultados de exames periciais, sujeitando-se a multas por falsas declarações. Vi mulheres desfiguradas a pedirem perdão pelos maridos, a dizerem que a culpa foi delas que os haviam provocado, que eles tinham "mau vinho". Vi mulheres que desculpavam os maridos por violarem as filhas chamando-as de mentirosas: vi de tudo. Percebo a vergonha, o desabono social e o estado de negação que levavam muitas a dar o dito pelo não dito. Sei obviamente o que diz a lei, que é apertada quanto aos requesitos deste crime, mas também sei que, em não havendo coabitação nem relações de submissão entre vítima e agressor, por assim dizer, os factos podem sempre caber noutros lados: ameaças, ofensas corporais, coacção, injúrias, difamação... é só escolher. Mas depois existem umas zonas cinzentas que são fodidas e que parece não encaixarem em lado nenhum. Em que, por exemplo, há uma relação que só esporadicamente é de cama e mesa. Uma relação em que o abuso é perpetrado à distância e não entre quatro paredes, mas do qual não se pode igualmente fugir. E que reside precisamente no facto de se tornar público, e quanto mais público, melhor. E em que a vítima, por mais que racionalmente saiba que não pode ceder, o faz. Voltando para uma casa que não é sua, uma e outra vez, cedendo à manipulação, à pena, à chantagem e contribuindo assim para manter uma ficção que a contraparte quer forçosamente fazer valer como verdadeira. É claro que, neste aspecto, a culpa é em parte da vítima que não tem coragem para cuspir a verdade na cara do agressor, e que até se sente confortável com os momentos de carinho, com as juras de amor, com as promessas de protecção compulsiva, como os primeiros cappos cobravam protecção aos comerciantes das vielas de nova iorque, que suspiravam de alívio quando aqueles viravam as costas porque ao menos continuavam vivos. Só que a coisa complica-se quando a vítima deixa de o ser. Ou seja, quando passa temporariamente ao ataque, aproveitando uma fraqueza momentânea do agressor, como por exemplo uma dependência (nem que seja dela, da própria vítima). E então passamos às agressões mútuas, às chantagens em ricochete, às manipulações com volta, ao inferno em dobro. As mulheres não gostam de apanhar, como certos idiotas gostam de afirmar (e nós mesmas o dizemos, mas num sentido retórico que os homens não entendem), mas aguentam. E aguentam muito: pelos filhos, pelo status, pelos bons tempos, para poderem dormir à noite, para não ficarem sozinhas, sei lá. Quase nenhuma aguenta porque gosta: isso é mentira, muitas ficam pelo medo. Mas nem todas são passivas; e as que não o são, dão e levam. São vítimas e carrascos. E neste tipo de relações cria-se uma dinâmica doentia da qual é difícil sair. Porque dá um certo gozo quando não se tem mais nada. É a adrenalina dos desocupados, dos desempregados, de quem não têm vida própria ou dos que a têm coxa, deficiente. Ou dos que, apenas, insitem em repetir um padrão como modo de vida. E quebrar este selo esquizofrénico que se estabelece entre duas pessoas que vivem de ficções sucessivas e que se digladiam por elas, não é fácil. O primeiro passo de um para o final é sempre encarado pelo outro como um segundo passo para o recrudescimento da contenda, não há qualquer espécie de entendimento intelectual nem compreensão afectiva, porque um não acredita pura e simplesmente no outro. Todos os sinais são mal interpretados e suscitam reacções inadequadas e excessivas. Na prática, há sempre um mais excessivo, que supostamente ama mais, que quer mais, que quer tudo, que fode mais o juizo do outro, pelo que não existe nunca nem equilíbrio nem paz, apesar de a relação (?) tender a prolongar-se no tempo à custa de intrincados laços de mágoa, ódio e episódios esporádicos de carinho e arrependimento. Infelizmente, os sentimentos negativos podem unir duas pessoas tanto ou mais do que o amor puro. As pessoas são complicadas, têm vidas fodidas, muitas tiveram infâncias difíceis, outras perderam tudo, foram defraudadas, traídas, desintegradas pela indiferença alheia. Mas nada justifica que exista uma linha ténue que separe o amor do ódio. Eu, pelo menos, não acredito nisso. Ou é uma coisa e quer-se bem ao outro, e queremos que ele seja feliz mesmo que não o tenha sido connosco, ou o odiamos (porque fomos traídos, preteridos ou porque pura e simplesmente não sabemos fazer outra coisa). O ódio, poderoso, acaba sempre por vir ao de cima e manifestar-se nas suas múltiplas e maquiavélicas formas, obliterando o amor. Nestes casos em que se é simultaneamente vítima e carrasco, a culpa por vezes morre solteira. Não nos que referi supra, obviamente. Mas, em todos eles - e como depois concluem todas as mulheres que se conseguiram libertar do jugo alheio, as que sobreviveram, as que fugiram a relações doentias, as que se conseguiram manter sãs no charco da loucura, a resposta encontram-na numa simples frase que dão consigo a repetir, como um mantra fundamental, um grito libertador, uma homenagem ao estoicismo: NUNCA MAIS.